Ilustração: Wira Tini
Por: Rosiene Carvalho, jornalista
“Sinceramente, não sei por que existe tanta insensibilidade, tanto egoísmo e tanta podridão entre os que se dizem, em alto e bom som, defensores dos índios”. Dita em 1973, referindo-se à conduta de funcionários de campo da Funai, a frase do missionário jesuíta Antônio Iasi Júnior é atual e adequada aos poderes executivo, legislativo e judiciário brasileiros no trato aos direitos indígenas.
A declaração aspeada consta no documento Y-Juca Pirama. O índio: aquele que deve morrer, um dossiê produzido pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e considerado um marco como conteúdo sistematizado de denúncia das múltiplas violências em territórios indígenas. Foi publicado em pleno regime militar. A sentença provocativa do título, inspirada na obra de Gonçalves Dias do século XIX, permanece atual.
A tentativa de exterminar indígenas é uma constante desde o início da colonização, a condição é que se diversificou. O último relatório do Cimi, Violência contra os povos indígenas no Brasil, lançado em 2024, descreve 2.401 registros de violência contra essas populações, entre 2022 e 2023. Entre os relatos estão conflitos provocados pelo mercado de carbono e o convívio com facções criminosas na floresta, nos rios e na periferia da Amazônia urbana.
Enquanto os três poderes da República dão palco para violências institucionais como o Marco Temporal, os territórios e seus povos sofrem com altos índices de assassinatos (208), suicídios (180) e mortalidade infantil entre crianças de 0 a 4 anos (1.040).
Por cima, inviabilizam novas demarcações de territórios e debatem a flexibilização das áreas já demarcadas para favorecer interesses econômicos e explorações predatórias nas terras indígenas. Por baixo, deixam faltar água potável, aulas para crianças e jovens indígenas. Tudo agravado pela emergência climática.
De todas as formas, os indígenas são afugentados de suas terras e identidades. O estado do Amazonas — com a maior população indígena, os piores índices de violência e trechos de
rios e floresta dominados por rotas internacionais de tráfico de drogas e mercados ilegais de recursos naturais — não poderia ficar de fora da liderança dos dados que violentam povos indígenas e o meio ambiente. Sobretudo quando o poder político, seja da direita bolsonarista ou da base de centro-esquerda lulista, sem pudor, compromete-se com pautas nocivas à floresta e seus povos.
Em agosto de 2022, o governador do Amazonas prometeu ser contra a criação de reservas extrativistas e se colocou a favor da “exploração das riquezas naturais” do estado. Wilson Lima (União), então candidato à reeleição, disse na ocasião: “Eu vou lutar e vou até as últimas consequências contra quem quiser fazer isso aqui”.
Em abril de 2025, do outro lado do campo político, os senadores Eduardo Braga (MDB) e Omar Aziz (PSD), aliados do presidente Lula, lançaram, cinco dias após o Dia dos Povos Indígenas, suas pré-candidaturas ao Senado e ao Governo do Amazonas. No discurso para cerca de mil políticos do interior do estado, estavam a defesa da exploração mineral em locais com litígio de licenças em função da presença de povos indígenas, a construção da BR-319, que ameaça ampliar o arco de desmatamento na área mais preservada da Amazônia, e a desinformação sobre demarcações de territórios indígenas.
“Chega de demarcarem terras sem o povo ser ouvido. Chega de termos uma riqueza que Deus nos deu, viver em cima da riqueza, de sermos pobres e não termos direito de explorar esta riqueza”, declarou Eduardo Braga.
Lima e Braga não estão sozinhos na guerra contra os direitos dos indígenas. Todas as vezes em que pisa no estado, o vice-presidente da República e presidente do Conselho Nacional de Fertilizantes e Nutrição de Plantas (Confert), Geraldo Alckmin (PSB), demonstra seu entusiasmo com o projeto de mineração no território mura em Autazes. Alckmin, nomeado para o Conselho pelo presidente Lula, silencia sobre os indígenas com o argumento de que “pode ser um dos maiores investimentos do país”. Ele diz que a mineração de potássio representa uma economia de 98% nos fertilizantes do agronegócio brasileiro. “O Brasil é o maior exportador de alimentos do mundo. Vamos trabalhar com empenho para resolver o problema jurídico”, disse Alckmin em março de 2023.
A força do Estado contra os povos indígenas vai além das palavras. No governo Lula e do bolsonarista Lima, a mineradora canadense Brazil Potash Corp. conseguiu 21 licenças de instalação em menos de dois anos no Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) para fazer mineração em território indígena em processo de demarcação.
Em agosto de 2021, o rio Abacaxis testemunhou torturas e mortes promovidas pela Polícia Militar do Amazonas. Foram cinco mortos e dois desaparecidos, dentre os quais estavam dois mundurukus moradores do assentamento agroextrativista Abacaxis 2. A violência policial começou após o governador Lima pedir uma resposta dura ao assassinato de dois policiais na região.
A pesquisa da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) em parceria com a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), divulgada em 2022, sobre violência contra mulheres indígenas, constatou que 61% dos casos no alto rio Negro foi praticado por homens militares com origem em outros estados. Localizado em área de fronteira com Colômbia e Venezuela, São Gabriel da Cachoeira é um dos poucos municípios da Amazônia com contingente diverso de segurança e é considerada a cidade mais indígena do Brasil.
No Javari, povos de recente e nenhum contato com a sociedade envolvente seguem ameaçados por invasões e omissões institucionais. O brutal assassinato do indigenista Bruno Pereira mantém-se impune, tanto pelo caso em si como pela escolha do Estado de impor invisibilidade às vidas que o indigenista lutou e morreu para defender.
Poucas pesquisas e recursos se movimentam para estabelecer diagnósticos e políticas eficientes para a região multiétnica, continental, diversa geograficamente e onde o crime organizado avança na conquista de territórios.
Os dados do Cimi se baseiam em monitoramento de matérias da mídia local, controlada pelo poder econômico e político, e pela cobertura nacional que, via de regra, cumpre pautas sensacionalistas, expedicionárias e românticas na Amazônia. O método colonial é inquebrantável em todos os níveis e setores.
A força na fraqueza é o que resta aos povos na luta secular por sobrevivência e por suas terras. A violência contra o povo mura em Autazes é emblemática do ponto de vista histórico e da resistência presente dos povos indígenas. Quase extintos, os muras há séculos estão no caminho dos conluios econômicos e políticos. Entre 1738 e 1739, padres jesuítas, colonos e o governo colonial queriam exterminar “os bárbaros” que “infeccionavam” o rio Madeira para explorar as drogas do sertão. No Império, precisavam morrer: eram linha de frente da revolta popular Cabanagem. Na República, enfrentam o agronegócio, a indústria de fertilizantes e os interesses dos governos federal e estadual.
Guerreiro de todas as causas mura desde criança, o professor Herton Mura bradou, numa reunião em 2024, o medo e o risco permanentes de crianças, mulheres, jovens, homens e anciões indígenas em seus territórios, nestes tempos e circunstâncias: “o que estão esperando? Que um de nós tombe para tomar providências?”.