Capital do Pará reempacota obras históricas de macrodrenagem e saneamento como legado da conferência do clima, mas população critica atrasos e vê ações com desconfiança. Especialista alerta que construções devem vir acompanhadas de projeto de educação ambiental e gestão territorial
Por Cecilia Amorim
Belém, cidade que se prepara para sediar a Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (COP30) em novembro deste ano, abriga cerca de 10% de sua população em áreas sob risco de desastres hidrogeológicos, como inundações, alagamentos, deslizamentos e erosão que podem ser agravados pela crise climática, segundo análise exclusiva da InfoAmazonia com base nos dados do Serviço Geológico do Brasil (SGB). A capital do Pará está “reempacotando” obras antigas de macrodrenagem e saneamento, importantes para minimizar os problemas crônicos de alagamentos, enquanto tenta se vender como uma cidade sustentável.
Como parte do chamado “legado da COP”, o governo do Pará anunciou em 2024 um pacote de obras para drenagem pluvial e urbanização de ruas no entorno de 12 canais das bacias dos rios Tucunduba, Murutucu, Una e Tamandaré, principais cursos d’água de Belém. A promessa é reduzir os alagamentos crônicos que afetam diversos bairros, mas, entre os moradores, ainda há dúvidas se, desta vez, os problemas antigos terão solução definitiva.
Apesar de promovida agora como vitrine ambiental para a COP30, o pacote de obras não é novo: trata-se de um projeto de macrodrenagem iniciado em 1996, que foi paralisado diversas vezes ao longo de quase três décadas e, agora, foi reempacotado como solução para as enchentes na bacia do Tucunduba — formada por 12 canais secundários que deságuam no canal principal. A previsão de conclusão até novembro deste ano.

Esta é a segunda reportagem da série Vulneráveis do Clima, que mapeou quem são os mais expostos a desastres climáticos na região amazônica. É uma produção da InfoAmazonia com os veículos da Rede Cidadã InfoAmazonia Agência Carta Amazônia (PA), Vocativo (AM), Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Amapá (AP), Pulso Amazônico (AM) e Voz da Terra (RO).
DIFERENÇA ENTRE ENCHENTE, INUNDAÇÃO E ALAGAMENTO Enchente: Quando há um aumento considerável do volume da água a ponto de encher os canais. Inundação: Quando o canal não consegue dar vazão ao volume da água e ela transborda invadindo ruas e casas. Alagamentos: Quando a água que vem dos canais ou da chuva fica acumulada nas ruas por problemas de drenagem. |
Em Belém, muitos bairros com áreas de risco cresceram às margens de rios e canais com mais intensidade na década de 1940. A Agência Carta Amazônia ouviu lideranças locais para entender um pouco mais sobre o longo processo de ocupação dessas comunidades. Elas foram aterradas com lixo, caroços de açaí e restos de construção e, às margens, somou-se o lixo e o entulho nos canais. Assim, houve o aumento do volume de água circulando e as enchentes e inundações se tornaram mais frequentes. Os bairros cresceram de forma desordenada, sem projetos de infraestrutura e saneamento.
O projeto reempacotado

Localizado às margens do rio Tucunduba, o bairro do Guamá – um dos locais que está recebendo as obras anunciadas – nasceu no entorno de três hospitais leprosários, lugares criados para isolar pessoas portadoras de doenças infectocontagiosas. Os hospitais eram o destino final principalmente de pessoas negras escravizadas, e posteriormente ex-escravos adoecidos. Com o crescimento da cidade, o bairro também se desenvolveu e hoje é o mais populoso da capital paraense, com pouco mais de 100 mil habitantes, na sua maioria pardos, negros e de baixa renda segundo o censo do IBGE de 2022. Essa população convive há décadas com enchentes sazonais.
Os moradores relatam que as ocorrências de enchentes e alagamentos se agravaram com o início das obras de macrodrenagem do canal do Tucunduba, um projeto do governo do estado em parceria com o governo federal, iniciado há mais de duas décadas e até hoje inacabado. O objetivo era conter as enchentes, reurbanizar margens com intervenções comprometidas com o meio ambiente e oferecer dignidade a quem vive no entorno. Mas, segundo os moradores, o que era para ser solução virou mais um problema.
Macrodrenagem do Tucunduba (11 canais) Orçamento: R$ 783 milhões Financiadores: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e Governo do Pará (Orçamento Geral do Estado) Gestor da obra: Secretaria de Estado de Obras Públicas (Seop) Previsão de término: novembro de 2025 |
Para Íris Bandeira, pesquisadora do Serviço Geológico do Brasil (SGB) que atua no mapeamento das áreas de risco de inundação e deslizamentos na Amazônia, esses locais não deveriam ser ocupados por serem regiões que naturalmente inundam.
“O correto não era que essas pessoas morassem ali. Era para o governo implementar políticas públicas para lugares que fossem mais seguros. No entanto, aquilo já está instalado. Então, precisamos criar infraestrutura dentro desse processo”, afirma. Segundo a pesquisadora, é preciso estruturar esses bairros por meio de obras de macrodrenagem e saneamento para que os moradores vivam com dignidade diminuindo os riscos de eventos hidrogeológicos.
Bandeira também afirma que, se o projeto de macrodrenagem da bacia do Tucunduba, com seus 11 canais, for bem executado, deve ser suficiente para resolver os problemas com as enchentes e os alagamentos. Porém, ela alerta que as chuvas intensas e marés altas devem aumentar nos próximos anos e que é preciso envolver as populações locais para que o projeto seja eficiente a longo prazo.
“Se não tiver um projeto de educação ambiental e gestão territorial vinculado ao projeto construtivo, também não haverá resolução. Isso porque, se as pessoas continuarem jogando lixo na rua e na drenagem, haverá entupimento das tubulações, prejudicando o escoamento da água. Também é necessário um projeto de ordenamento territorial que iniba as pessoas de ocuparem a borda do canal”, afirma.
População convive com alagamentos crônicos

João da Costa Vale, de 59 anos, olha com tristeza a antiga casa onde viveu por mais de 30 anos e criou seus quatros filhos. O espaço, no bairro do Guamá, em Belém, está tomado por infiltrações, mofo e o silêncio de um lar destruído pela água. Ao lado dele, sua esposa, Tereza Máxima, de 56 anos, observa com pesar a cozinha destruída e a parede carcomida pela umidade.
“A gente perdeu tudo. A casa foi tomada pela água. Choveu, alagou. Foram três meses com a água dentro de casa. Perdemos móveis, documentos e o investimento de uma vida toda para deixar essa casa a cara da nossa família”, conta Tereza Máxima.
Durante o auge da pandemia de Covid-19, em 2020, a população do bairro do Guamá enfrentou mais do que o medo do vírus. Enchentes severas invadiram casas e mudaram a rotina de centenas de famílias. Vale foi um dos atingidos. Ele e a família perderam tudo e precisaram abandonar a residência onde viviam há anos. “Conviver com alagamento já virou rotina por aqui”, desabafa. Como ele, muitos moradores veem suas vidas afetadas ano após ano pela força das águas.
A casa de João da Costa Vale e Tereza Máxima é apenas uma entre milhares no bairro Guamá atingidas por alagamentos frequentes, agravados pelas obras inacabadas, mudanças no regime de chuvas e ausência do poder público em garantir saneamento básico aos moradores. “A gente achava que era normal viver assim, mas não é. Isso aqui é desigualdade. É uma tragédia escondida”, diz Vale, liderança comunitária.
“As máquinas vieram, tiraram as pontes, prometeram drenagem, praça e quadra. Mas depois sumiram. A obra do canal do Caraparu está parada devido a processo indenizatório das áreas que serão removidas, hoje só tem mato. Prometeram tudo, não entregaram nada. Agora a gente vive assim, com os pés dentro da lama. Eu acreditava que eles terminariam isso até a COP30, hoje não acredito mais”, completa.
O risco em Belém – A Defesa Civil de Belém em dezembro de 2021 identificou 125 áreas de risco na cidade – Dessas, 76 áreas estão sob risco de inundação ou alagamento. – Entre 2018 e 2023, a cidade registrou 8 enchentes, com mais de 100 mil pessoas afetadas, 456 desabrigados e um prejuízo estimado em R$ 21,8 milhões Fonte: Relatório de Análise de Risco de Belém |
Remoções aprofundam vulnerabilidade histórica

Segundo dados divulgados pelo governo do estado, as obras de macrodrenagem da bacia do Tucunduba irão beneficiar cerca de 300 mil pessoas. Entre os benefícios anunciados, estão a requalificação viária, com obras de drenagem e pavimentação.
O canal do Caraparu no Guamá faz parte da bacia do Tucunduba. Para a continuação das obras do projeto, casas que ficam situadas nas margens e por cima do canal estão sendo removidas. A preocupação dos moradores é com o lento processo indenizatório, a remoção de casas sem um processo de reassentamento e os baixos valores de indenizações que intensificaram a vulnerabilidade de centenas de famílias.
Alcidete Matias, de 49 anos, vive há 27 anos em uma casa em área de palafitas em cima do canal. Ela relata que os alagamentos são constantes. “Quando dá chuva, os canais estão entupidos, as fossas transbordam. A maioria das casas ficam alagadas. Já perdi móveis, documentos, e meus filhos adoeceram”, conta.
A família já enfrentou surtos de doenças como leptospirose e dengue, além da constante presença de cobras vindas do canal. Apesar disso, a grande preocupação dos moradores com a remoção é devido aos baixos valores das indenizações, que segundo eles variam de R$ 5 mil a R$ 40 mil. “O que eles estão pagando é muito pouco, o que as famílias estão recebendo não dá para comprar outra moradia, a pessoa vai sair daqui para onde?”, questiona a dona de casa.
Vizinho ao Guamá, o bairro da Terra Firme também está recebendo obras da bacia do Tucunduba. Segundo o líder comunitário Francisco Batista, de 46 anos, o projeto não traz as melhorias prometidas. A proposta inicial previa a criação de um parque linear com área de lazer e vegetação. “Só abriram o canal. Nada do parque saiu do papel”, afirma.
Francisco ressalta que a falta de regularização fundiária tem dificultado o acesso dos moradores às indenizações que possibilitem às famílias a recomeçarem em outras áreas. No entorno do canal Lago Verde, que também compõe a bacia do Tucunduba, diversas casas deverão ser removidas para a ampliação da via. São moradias que enfrentam constantemente os riscos de alagamentos, enchentes e inundações.

Em fevereiro deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva esteve em um evento sobre o legado da COP30. Na ocasião, ele assinou a portaria que autorizava a regularização fundiária de áreas da União nos bairros de Terra Firme, Guamá, Marco e Universitário, beneficiando também pessoas que vivem em áreas de risco hidrogeológico. A titulação dos imóveis na Terra Firme já está em andamento e faz parte do Acordo de Cooperação Técnica, firmado com Universidade Federal do Pará (UFPA), Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI, do Governo Federal), Superintendência do Patrimônio da União no Pará (SPU/PA) e Companhia de Desenvolvimento e Administração da Área Metropolitana de Belém (CODEM) para garantir a titulação de terrenos ocupados neste bairros.
A titulação é um processo aguardado com ansiedade pelos moradores de áreas de risco que serão removidos devido às obras da macrodrenagem. A esperança dos moradores é que, com a posse do título, os valores das indenizações sejam mais altos e possibilitem a compra de um imóvel em outra área.
“Como nós não temos titulação, eles pagam o que foi gasto para construir. Muitas casas são pequenas e de madeira. Tem gente que vai receber R$ 5 mil. Não dá pra nada. Então, o mutirão de regularização fundiária ajuda nisso porque com a titulação valoriza mais”, afirma Francisco.
Maria de Nazaré Duarte, de 65 anos, mora há mais de trinta anos às margens do canal Lago Verde. Ela conta que a coleta de lixo nunca passou na sua rua. Para fazer o descarte, a idosa precisa caminhar cerca de dois quarteirões para deixar o lixo em um local de coleta.
As obras do canal se encerram próximo a sua casa, mas o canal continua pela rua sem qualquer previsão de beneficiamento. A senhora criou os quatro filhos nesta mesma casa, sempre convivendo com os transtornos de ter a rua e a casa alagadas quando o canal transbordava. “A minha casa já foi pro fundo várias vezes. Já perdi muita coisa. Há três anos suspendemos a casa, mas eu já tinha perdido guarda-roupa, armário, fogão, sofá. Tive que recomeçar tudo de novo”, conta Maria.
A remoção também é uma preocupação para a idosa, que parou a construção da residência de sua família devido à notificação de remoção de parte da estrutura já erguida. “Parei a construção da minha casa porque me disseram que vão tirar um pedaço dela. Não me deram o preço, não resolveram nada, não posso continuar assim”, desabafa dona Maria.
A Secretaria de Estado de Obras Públicas do Pará (SEOP), responsável pela execução das obras de macrodrenagem da bacia do Tucunduba, foi procurada pela reportagem para esclarecer como estão sendo conduzidas as remoções de moradores e o pagamento das indenizações, além de comentar sobre a paralisação das obras e as denúncias feitas por moradores das áreas afetadas. Até o fechamento desta reportagem, no entanto, a secretaria não respondeu os questionamentos.
Em 2024, Belém recebeu os trabalhos de mapeamento de riscos hidrológicos que resultaram no desenvolvimento do Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR) da cidade. A iniciativa integra um conjunto de políticas públicas federais, coordenado pela Secretaria Nacional de Periferias do Ministério das Cidades. Localmente, está sendo elaborado pela Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA), com apoio das Defesas Civis municipal e estadual. Entre suas etapas, destaca-se o mapeamento detalhado de áreas de risco de inundação e erosão, como o bairro da Terra Firme, na bacia do Tucunduba. As áreas foram classificadas em risco muito alto, alto ou médio, conforme a ameaça e a vulnerabilidade identificadas.
Milena Andrade, geóloga e especialista que atuou na construção do PMRR, explica que o plano traz apontamentos de medidas estruturais e não-estruturais e que, em alguns pontos, a remoção é, de fato, necessária. “Essas medidas foram indicadas pela equipe técnica multidisciplinar em conjunto com a participação social nas oficinas de mapeamento participativo em todos os Distritos Administrativos de Belém. Foram priorizadas medidas para evitar remoções de famílias”, conta a pesquisadora.

Para Naira Carvalho, arquiteta da Secretaria de Estado de Obras Públicas (Seop), as obras trazem múltiplos benefícios para a população local. Em declaração à Agência Pará, veiculo oficial do governo, ela afirmou que, em muitos casos, os próprios moradores passam a cuidar melhor do espaço quando contam com mais qualidade de trafegabilidade, melhor acesso e mais mobilidade, o que permite, por exemplo, a passagem de veículos de segurança e de coleta de lixo — algo que, segundo ela, faz toda a diferença para a comunidade.
Enquanto governos e representantes internacionais discutem metas de carbono, mercados verdes e transição energética, moradores seguem enfrentando, dia após dia, o impacto direto da crise climática em suas casas.
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Esta reportagem faz parte da Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais da Amazônia.
Texto: Cecilia Amorim
Ilustrações: Utópika Estúdio
Fotografia: Harrison Lopes
Edição: Beatriz Jucá
Direção editorial: Juliana Mori