A sigla TFFF vem de Tropical Forest Forever Facility. O fundo, lançado no evento que antecede a COP30, reúne países e recursos para financiar a conservação das florestas tropicais e apoiar comunidades locais

Por Cecília Amorim

Lançado oficialmente no primeiro dia da Cúpula do Clima, em Belém, o Fundo Tropical Floresta Para Sempre (TFFF, na sigla em inglês) marca um novo momento na política ambiental internacional. O fundo, idealizado pelo Brasil em parceria com outros países detentores de florestas tropicais e apoiado pelo Banco Mundial, estabelece uma regra inédita: ao menos 20% de todos os recursos transferidos aos países beneficiários deverão ir diretamente para organizações de povos indígenas e comunidades tradicionais, sem intermediários e com gestão autônoma.

A proposta é apresentada pelo governo brasileiro como uma reparação histórica e teve participação direta de organizações do movimento indigena na sua construção,  processo que envolveu rodadas de consulta nacionais, participação em negociações internacionais e construção de um conselho consultivo próprio. Apesar de serem os principais responsáveis pela conservação das florestas tropicais, esses grupos sempre foram os últimos a receber recursos climáticos.

“O presidente Lula tem dito que esta deve ser a COP da implementação. Consolidar o TFFF com o mínimo de 20% para apoio direto às comunidades indígenas e locais é colocar essa verdade na prática”, afirmou a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, durante o lançamento.

O presidente Lula lançou oficialmente o Fundo TFFF, durante a Cúpula do Clima, em Belém. (Foto: Bruno Peres/Ag. Brasil)

O TFFF nasce com uma ambição econômica global: mobilizar até US$ 125 bilhões combinando US$ 25 bilhões públicos com US$ 100 bilhões do setor privado. Segundo o governo, cada dólar estatal deverá alavancar quatro dólares privados, em um modelo que remunera países que mantêm suas florestas de pé.

Para Eduardo Ditt, diretor executivo do IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas, o fundo é instrumento inovador para fortalecer a governança dos territórios e reduzir desigualdades nas comunidades tradicionais que habitam as florestas.

“A valoração econômica da floresta e de sua biodiversidade tem grande relevância para a sua conservação e consequentemente para os esforços de contenção do aquecimento global. Ao mesmo tempo, em qualquer mecanismo voltado à premiação daqueles que conservam as florestas, deve-se estar atento ao justo direcionamento de recursos para que seja contemplado o bem-estar das pessoas, especialmente povos, comunidades tradicionais e indígenas que, comprovadamente mantêm a floresta em pé, algo estratégico no enfrentamento da crise climática”, complementa Eduardo.

Por que isso importa para a Amazônia?

A Amazônia concentra a maior porção de florestas tropicais remanescentes do planeta. Cerca de 30% da floresta está situada em terras indígenas, quilombolas ou territórios de populações tradicionais, que apresentam as menores taxas de desmatamento.

A contribuição das comunidades quilombolas para a conservação da Amazônia também é comprovada por dados recentes. Durante a COP 16 em 2024, a Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) apresentou análises que mostram que, entre 2003 e 2022, os territórios quilombolas perderam apenas 1,4% de cobertura florestal, o equivalente a 82% menos desmatamento que as áreas ao seu redor, segundo estudo do Instituto Socioambiental (ISA). Além disso, essas áreas apresentam índices mais altos de regeneração e manutenção da vegetação nativa do que propriedades privadas vizinhas. Os dados reforçam o papel estratégico dos quilombos como zonas de preservação socioambiental ativa, onde a relação entre território, ancestralidade e manejo tradicional funciona como uma barreira concreta contra o avanço da destruição.

Um relatório sobre o papel das Terras Indígenas na proteção das florestas divulgado pelo MapBiomas mostra que, nos últimos 30 anos, essas áreas perderam apenas 1% de sua vegetação nativa, enquanto nas áreas privadas a perda chegou a 20,6% no mesmo período. O contraste revela modelos distintos de uso do território: enquanto nos Territórios Indígenas prevalecem práticas de manejo tradicional e uma relação de equilíbrio com a floresta, nas propriedades privadas dominam atividades produtivas de maior impacto ambiental, como a expansão agropecuária. Os dados apontam que onde há presença indígena, há maior conservação da biodiversidade, reforçando a necessidade de que essas populações estejam no centro das políticas de financiamento climático, inclusive no acesso direto aos recursos do TFFF.

A regra prevê que, embora os países recebam integralmente os recursos do TFFF, uma porcentagem deverá ser garantida diretamente a povos indígenas e comunidades tradicionais. Pelo mecanismo, 20% do montante total transferido a cada país precisa ser colocado em uma conta específica, administrada por um comitê nacional composto por representantes dessas comunidades.

Caso o governo não repasse esses recursos, perde o direito aos valores do fundo no ano seguinte. Se houver impasse político ou falta de acordo interno, a verba pode ser encaminhada diretamente a uma agência executiva global, assegurando que o dinheiro chegue aos territórios. A medida busca evitar bloqueios, ingerências governamentais ou disputas que historicamente têm limitado o acesso direto das comunidades aos financiamentos ambientais.

Mas quem são as comunidades contempladas?

Aqui surge um ponto crítico: quilombolas não aparecem explicitamente como beneficiários diretos nesse desenho inicial. Embora o fundo fale em “comunidades tradicionais”, o documento operacional e os discursos institucionais têm priorizado claramente povos indígenas e comunidades locais florestais, com pouca ou nenhuma referência aos quilombos amazônicos que também protegem grandes extensões de florestas primárias.

Segundo levantamento da Conaq, existem mais de 6 mil comunidades quilombolas no Brasil. Muitas estão em áreas de alta biodiversidade, incluindo várzeas, manguezais e florestas de terra firme. Entretanto, menos de 200 territórios quilombolas estão oficialmente titulados. A falta de titulação territorial fragiliza a preservação ambiental e exclui quilombolas de mecanismos de financiamento climático, como o TFFF.

Os territórios quilombolas têm um papel crucial na conservação da floresta e, no entanto, não foram convidados formalmente para o processo participativo que construiu o TFFF, reforçando uma tradição de invisibilidade institucional e política.

Comunidade Quilombola de Gurupá., no Marajó, Pará(Foto: Harrison Lopes/ Carta Amazônia)

Tati Santos, liderança do Quilombo do Curiaú no estado do Amapá, afirma que os financiamentos são distribuídos de forma desigual entre as comunidades vulneráveis.

“O financiamento internacional e nacional chega com mais força para a pauta indígena. Não queremos disputa, sabemos que os povos indígenas são originários desta terra, mas também somos guardiões da floresta. Existe uma Amazônia negra que precisa ser reconhecida. Somos 42 comunidades quilombolas no Amapá, mas não recebemos o mesmo acesso a apoio e políticas. Queremos nosso próprio lugar de fala e de gestão dos recursos, não sermos representados por outros”, explica.

A líder quilombola integra a Aliança dos Povos pelo Clima, coletivo que tem origem em 1988, articulado por lideranças como Chico Mendes e o Cacique Raoni, e que hoje se fortalece com a participação de jovens quilombolas, beiradeiros, pescadores e demais defensoras e defensores da floresta. Uma das principais bandeiras do grupo é o financiamento climático direto, a defesa de que os recursos destinados à preservação ambiental cheguem sem intermediários às comunidades que, de fato, protegem os territórios. A atuação da Aliança reforça que manter a floresta em pé depende do reconhecimento dos direitos territoriais, da autonomia das populações tradicionais e da compreensão de que a Amazônia é um território vivo, plural e habitado, onde conhecimento ancestral e futuro caminham juntos.

Na prática, o fundo avança ao reconhecer o papel dos povos indígenas, mas mantém um desequilíbrio histórico ao não garantir a mesma visibilidade aos quilombolas, que também preservam a floresta e enfrentam violência de latifundiários, milícias ambientais e grilagem.

O TFFF é um marco histórico por valorizar financeiramente a proteção das florestas tropicais e garantir repasses diretos a povos indígenas. Mas, ao excluir quilombolas da governança e do desenho oficial, reproduz uma hierarquização entre guardiões da floresta, deixando invisível uma população que há séculos resiste, protege e mantém vivo o território amazônico.

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Foto de capa: abio Rodrigues-Pozzebom/Ag. BrasiL

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