Mulheres indígenas, quilombolas, ribeirinhas, periféricas e agricultoras lideram a lista de quem mais sofre os efeitos das mudanças do clima

Por Cecília Amorim

A COP30, realizada em Belém, entrou para a história por finalmente reconhecer, de maneira explícita, que a crise climática tem gênero e que enfrentá-la sem isso é politicamente ineficaz e eticamente indefensável. A inclusão do Plano de Ação de Gênero no Pacote de Belém (sigla em inglês Belém GAP), marca um avanço institucional raro em negociações onde cada palavra é disputada. Mas, apesar da celebração, é preciso dizer com clareza: a distância entre o texto aprovado e a vida concreta das mulheres na linha de frente da emergência climática ainda é imensa.

É simbólico que este avanço venha em um ano em que a própria estrutura da COP mais uma vez expôs suas desigualdades internas. O site britânico Carbon Brief, especialista em cobertura climática, apontou que  43% das delegações eram compostas por mulheres, porém, isso não se refletia nos espaços onde o real poder de decisão se concentra. E nada muda o fato de que, em trinta edições, apenas cinco COPs foram presididas por mulheres. A ONU discute gênero, mas não coloca o discurso em prática.

O Belém GAP cria um roteiro de 2026 a 2034 com metas para fortalecer pontos focais de gênero, incorporar critérios sensíveis ao gênero no financiamento e monitorar progresso. É uma conquista política incontestável. No entanto, o plano nasce com fragilidades estruturais que não podem ser ignoradas.

A primeira delas é a natureza voluntária da maior parte das obrigações. O GAP “convida”, “incentiva”, “estimula”. Quase nunca exige. Sem compromissos vinculantes e sem metas financeiras mínimas, o risco é transformar o prejuízo histórico das mulheres em mais um capítulo de promessas não cumpridas.

O paralelo com a realidade é gritante: mulheres indígenas, quilombolas, ribeirinhas, periféricas e agricultoras são justamente quem mais sofre com secas, enchentes, contaminação da água, perda de território e aumento da violência após desastres — fatores amplamente documentados pela UNFCCC e ONU Mulheres. Mas, quando chega a hora de nomeá-las no texto, os termos desaparecem, substituídos por categorias genéricas que diluem especificidades e esvaziam políticas.

O que se viu em Belém foi o clássico jogo diplomático de neutralizar para não desagradar. E neutralizar, nesse caso, significa apagar mulheres reais para produzir consensos abstratos.

Durante as negociações da COP30, um dos pontos mais tensos foi a pressão de alguns países para retirar referências explícitas a mulheres trans do texto. O movimento, articulado sobretudo por governos conservadores como Rússia e Vaticano, escancarou a transfobia institucional ainda presente na diplomacia climática. Sob o pretexto de buscar “neutralidade” ou “coerência com legislações nacionais”, essas delegações tentaram impor uma visão restritiva de gênero que exclui identidades trans e não reconhece suas vulnerabilidades específicas diante da crise climática. A disputa deixou evidente que, para muitos Estados, a agenda de gênero avança apenas até o limite de seu próprio conforto ideológico — e que defender direitos de mulheres trans continua sendo uma fronteira política enfrentada com resistência, silenciamento e retrocessos deliberados.

Financiamento: o calcanhar de Aquiles que pode esvaziar a conquista

Nenhuma política climática avança sem dinheiro — especialmente políticas de adaptação, cuja efetividade depende de ações locais e territorializadas. É por isso que a fragilidade do eixo financeiro do GAP é tão preocupante.

O texto aprovado não estabelece porcentagens mínimas de destinação, nem cria mecanismos obrigatórios de reserva de recursos para projetos liderados por mulheres. Os anúncios sobre aumento do financiamento de adaptação foram celebrados, mas abriram espaços para muitas dúvidas, não sabemos quando, como, por quem e para quem esses recursos serão repassados.

A falta de clareza interessa aos países ricos, que historicamente anunciam valores altos e entregam pouco, e interessa também a governos nacionais que preferem manter o dinheiro sob controle centralizado, longe da autonomia das comunidades. É um padrão já conhecido: sem exigências explícitas, os recursos mais uma vez não chegarão às mulheres que mantêm seus territórios vivos, muito menos às jovens que lideram ações climáticas dentro de coletivos, aldeias e quilombos.

O Belém GAP é um instrumento importante, mas não resolverá nada sozinho. As mulheres que vivem na linha de frente da crise climática não precisam apenas ser consultadas, precisam governar. Precisam presidir COPs, chefiar delegações, dirigir secretarias nacionais, controlar orçamento climático e definir prioridades de adaptação.

A COP30 deixou evidente que a presença numérica não basta. As mulheres ocupam a sala, mas ainda não sentam na cabeceira da mesa. É essa inversão que determinará se o GAP será um mecanismo de transformação ou apenas mais um documento arquivado entre tantos planos ignorados da UNFCCC e das COPs passadas.

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Foto de capa: Reprodução gerada por IA via Google Gemini

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