Jornalistas de Roraima falam sobre xenofobia regionalista e a repercussão da crise humanitária do povo Yanomami na mídia nacional

As notícias sobre os efeitos nocivos do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami não são novidades para quem mora em Roraima. O assunto é pauta recorrente na imprensa local e se intensificou muito mais nos últimos quatro anos devido ao avanço da mineração ilegal no estado. Somente em 2022 foram realizados mais de 300 conteúdos sobre o tema no site G1 Roraima.

Mas nas últimas semanas, devido a repercussão nacional e internacional da crise humanitária do povo Yanomami, principalmente após a visita do presidente Lula na Casa da Saúde Indígena, em Boa Vista, no último dia 21 de janeiro, diversos profissionais da imprensa local foram alvos de comentários carregados de xenofobia regionalista. Entre os xingamentos, diversas acusações de omissão, silenciamento e questionamentos de “onde estavam os jornalistas de Roraima que não denunciaram a crise Yanomami?”

Chega a ser dolorido ver as pessoas questionando ‘onde estavam os jornalistas de Roraima que não denunciaram esse caso’. Me falta até resposta pra isso, na verdade. Sempre estivemos aqui, sempre denunciamos a invasão do garimpo no território Yanomami e os efeitos desse crime na saúde e modo de vida dos indígenas”, afirma Valéria Oliveira, repórter do G1 Roraima.

Valéria é vencedora do prêmio Vladimir Herzog, a principal premiação do jornalismo brasileiro. A conquista é o resultado de uma reportagem sobre a desnutrição de crianças Yanomami, que ela produziu para o programa Fantástico, da TV Globo, em 2021. Mesmo com o trabalho reconhecido nacionalmente, ela foi acusada injustamente de “não fazer jornalismo” e ignorar a pauta Yanomami na mídia local.

A revolta de Valéria em relação às acusações levianas na internet é compartilhada pela jornalista Vanessa Vieira. Editora do site Correio do Lavrado, que registrou 47 conteúdos sobre os efeitos do garimpo na TI Yanomami nos últimos anos, Vanessa afirma que a violação de direitos do povo Yanomami nunca foi silenciada pelo jornalismo de Roraima.

Quando fui questionada sobre onde estavam os jornalistas de Roraima que não denunciaram essa crise humanitária antes, eu respondi que os jornalistas estavam aqui, fazendo o trabalho, publicando dentro do possível. Mas é muito difícil a gente ser lido, a gente ser ouvido quando está num estado pequeno. É muito difícil nossas reportagens ganharem uma repercussão nacional e internacional. Mas a gente estava aqui, estava denunciando, estava dando voz às pessoas”, destaca a editora.

Em entrevista ao Carta Amazônia, as duas jornalistas, moradoras de Boa Vista, que já acompanham a pauta do garimpo ilegal no estado há muito tempo, relatam a repercussão da crise humanitária do povo Yanomami na mídia nacional.

Carta Amazônia: Qual fato foi a virada de chave para que a crise humanitária do povo Yanomami ganhasse a repercussão nacional e internacional que já merecia há muito tempo?

Valéria Oliveira: Eu acredito que o start maior foram as fotos divulgadas em janeiro e o dado de 570 crianças mortas que foi publicado pelo portal Samaúma. Assim que portal publicou, um dia depois, o presidente Lula anunciou a vinda para o estado. Esse anúncio da vinda foi na verdade o que virou essa chave e que despertou todo o interesse para Roraima. E aí começou-se a se reveicular as reportagens que já tinham sido publicadas. então, eu acho que todo mundo pensou “bom se o presidente no 20º dia de posse vai à Roraima” é porque deve ter alguma coisa muito grave acontecendo por lá”

Vanessa Vieira Só complementando o que a Valéria comentou, logo depois que o novo presidente e o os titulares dos ministérios tomaram posse, especialmente o Ministério da Saúde, teve uma reunião com o Júnior Hekurari, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Yek’wana (Condisi-YY) e nessa reunião, segundo o Júnior, foi anunciado uma conversa com a ministra da saúde e a possibilidade da equipe do governo visitar o território indigena. A situação estava muito complicada. e acredito que a partir dessa série de acontecimentos, todos os olhos do Brasil e do mundo se voltaram para os indígenas Yanomami, em Roraima.

Carta Amazônia: Na avaliação de vocês, como a imprensa local atuou na divulgação dessas denúncias nos últimos anos?

Vanessa Vieira: A pauta Yanomami era uma cobertura recorrente na imprensa local. Seja para falar sobre garimpo em terra indígena ou sobre o modo de vida da população. Como não temos acesso fácil à terra indígena, essa cobertura ocorria geralmente a partir de relatórios e documentos oficiais produzido pelas associações ou pelas lideranças indígenas que sempre denunciaram as violações provocadas pelo garimpo ilegal no território Yanomami. Ou seja, nunca deixamos de falar desse assunto e repercutir essas denúncias.

Valéria Oliveira: Quando a gente fala nas reportagens que é a Terra Yanomami é uma região de difícil acesso é porque realmente é extremamente difícil o acesso para o território. É uma região de mata fechada, de montanha, onde só se chega de avião, 98% da reserva só se acessa de avião e esse outro restante é por barco, mas que você demora dias, semanas nessa logística. Além disso, o tráfego de barco normalmente só os garimpeiros que fazem. Em relação à pergunta, eu posso dizer que no G1 [site] todo mundo sempre cobriu muito essa questão do garimpo com base em relatório, relatos, documentos. Já se falava muito em malária há um certo tempo, mas de 2018 pra cá a gente começa a ver com mais frequência o garimpo interferir diretamente na saúde da comunidade indigena, começa-se a ter mais pessoas morrendo de malária, criança desnutrida morrendo. A gente tem dezenas de reportagem publicada nos últimos anos sobre conflitos entre indígenas e garimpeiros, reportagens sobre postos de saúde invadido por garimpeiros, reportagens sobre servidores da saúde que começam a deixar o posto porque o garimpo chegou tão perto deles a ponto de não se sentirem seguros. Temos relatos de comunidade que ficou dois anos sem atendimento de saúde. Eu lembro de uma matéria sobre nove bebês que morreram na comunidade Surucucu. Eu estive no Território Yanomami para produzir uma reportagem para o Fantástico e posso falar que, realmente, era muito pior que a gente imaginava. O cenário era extremamente devastador. Visitamos comunidades cercadas pelo garimpo e vimos o quanto isso interfere total no modo de vida dos indígenas. Não tinha presença do Estado Brasileiro lá e o problema foi só se agravando ao longo dos anos, a ponto de uma criança morrer expelindo verme.

Carta Amazônia: Após repercussão da crise humanitária do povo Yanomami na mídia nacional e internacional, surgiram alguns comentários na internet, carregados de xenofobia regionalista, questionando o trabalho dos profissionais de imprensa de Roraima, como se esse assunto não fosse pautado constantemente pelos veículos locais. O que vocês têm a dizer a respeito desses questionamentos?

Vanessa Vieira: Nunca deixamos de falar desse assunto e repercutir essas denúncias. Quando ouvi um comentário questionando “onde estavam os jornalistas de Roraima que não denunciaram isso?” eu respondi que os jornalistas estavam aqui, fazendo o trabalho, publicando dentro do possível. Mas é muito difícil a gente ser lido, a gente ser ouvido quando está num estado pequeno. É muito difícil nossas reportagens ganharem uma repercussão nacional e internacional. Mas a gente estava aqui, estava denunciando, estava dando voz às pessoas.

Valéria Oliveira: Chega a ser dolorido ver as pessoas questionando “onde estavam os jornalistas de Roraima que não denunciaram esses casos”. Me falta até resposta pra isso, na verdade. Sempre estivemos aqui, sempre denunciamos a invasão do garimpo no território Yanomami e os efeitos desse crime na saúde e modo de vida dos indígenas.

Carta Amazônia: E como vocês avaliam a atuação do governo estadual de Roraima em relação a essa crise humanitária?

Vanessa Vieira: Eu acredito que houve omissão por parte do poder municipal e estadual, sim. Por mais que se diga que a saúde indígena é responsabilidade do governo federal, mas esses pacientes foram levados para Boa Vista. Então, as redes municipal e estadual de saúde que receberam esses pacientes também têm responsabilidade. O mínimo talvez fosse encaminhar um documento para o Ministério da Saúde e para a Secretaria Especial de Saúde Indígena para pedir providências dessa situação, pois teve um aumento muito grande de indígenas internados na cidade, tanto crianças como adultos. Portanto, alguma coisa errada estava acontecendo. E pelo que a gente tem apurado, essa comunicação das redes estadual de saúde com o Ministério da Saúde não aconteceu.

Valéria Oliveira: Roraima tem um discurso anti-índigena e pró-garimpo muito grande. Para vocês terem uma ideia, o atual governador, Antonio Denarium, que foi reeleito ano passado, sancionou durante o seu primeiro mandato duas leis pró-garimpo. Uma de autoria dele, que ele propôs para a Assembleia Legislativa, que liberava o garimpo no estado e com o uso do mercúrio, que é um metal altamente contagioso e que impacta diretamente na saúde. Essa lei foi sancionada pelo governador, foi parar no STF e foi derrubada pela corte. E aí dois anos depois, um outro deputado propôs na Assembleia Legislativa um projeto de lei que impedia os fiscais de queimarem e destruírem bens de garimpeiros e madeireiros que fossem apreendidos em fiscalizações. Esse deputado propôs essa lei depois de apenas quatro meses que havia assumido o mandato. O projeto tramitou rapidamente na Assembleia Legislativa e foi aprovado num período em que Roraima estava vivendo um processo muito intenso pró-garimpo. Houve uma pressão para que o governador sancionasse o projeto de lei, o governador sancionou a lei no dia que ele fez isso teve até um churrasco enorme na frente do palácio do governo para comemorar a sanção da lei. E aí mais uma vez a lei foi para o STF e o STF derrubou. E o Ministério Público Federal também atuou muito para que essa lei fosse considerada inconstitucional porque o governo estava querendo legislar mais uma vez sobre um assunto que era de contexto federal.