Odeio verde, odeio verde!”, grita o caçador com espingarda nos braços, enquanto anda pela floresta caçando um frágil pássaro. O belo pássaro de cor exuberante, não tem chance e é atingido pelo caçador. Abatido ele agoniza no chão. Enquanto isso, o caçador que detesta verde incendeia a mata. A ajuda surge pelos guardiões da floresta, Inaiá, que na lenda amazônica é a vitória régia, e Matinta Pereira, a bruxa da mata, juntas elas mobilizam as crianças presentes a salvarem o belo pássaro e a floresta.

Esta encenação aconteceu em uma estreita viela no bairro da Sacramenta periferia de Belém e fazia parte da programação do I Corredor Cultural organizado pelo Grupo Iaçá, que aconteceu no dia 15 de setembro.  “O corredor cultural é uma feirinha de arte e cultura popular que surge para agregar às produções culturais, produtos artesanais e culinária que a comunidade costuma fazer aqui na passagem”, fala Rosa Oliveira, idealizadora do corredor e criadora do projeto Iaçá. A programação inclui contação de história, brincadeiras, apresentações de danças e espetáculos musicais. É um momento também de alguns moradores conseguirem uma renda extra com vendas de comidas, bebidas e até um brechó. Todos ajudam na montagem do palco, som e decoração da rua. A rua estreita, onde o asfalto da prefeitura não chegou, ganha vida através da união dos moradores e do Grupo Cultural Iaçá.

Trabalhar a cultura na periferia é um grande desafio. O primeiro grande desafio é manter um lugar onde essas pessoas possam se reunir. Um grande desafio também são as finanças. A gente tem uma música que é ‘Esse jeito de amar a vida Iaçá’, é uma maneira que a gente vive não olhando as dificuldades, mas, para as possibilidades que a gente possa encontrar, então onde a gente encontra uma possibilidade a gente vai lá, a gente abre uma frente, senta debate”, afirma Marcos Vinicius Fontes, o Marquinhos, coordenador musical do Iaçá. Marquinho é musicista, instrutor de canto popular, coral e cênico, compositor, músico e tem formação em Piano Clássico e Teatro.

Há 25 anos a Associação Cultural Iaçá leva arte e cultura para Belém. O projeto concentra as atividades nos bairros da Sacramenta, Pedreira e Telégrafo, periferias da capital paraense. A associação tem quatro frentes de trabalho: Os Curumins que são crianças que participam de oficinas de dança, artes e cantos; O Jóias Iaçá, composto por jovens e adolescentes que fazem aulas de dança e teatro; O Flor da Idade, que leva dança a senhores e senhoras com mais de 60 anos que se apresentam pela cidade. O Grupo Iaçá foi criado por Rosa de Oliveira em 1997, e ao longo desse tempo tem se consolidado e se firmando como identidade cultural ativa na cidade.

A música tem espaço de destaque dentro do grupo. A maioria das canções que apresenta em suas programações são autorais, composições que falam de regionalidade, lendas, meio ambiente e territorialidade.  “As pautas ambientais, e territórios sociais e tudo mais, esse é o nosso desafio maior. Essa luta em preservar o meio ambiente, essa luta em levar a consciência ambiental que todos nós fazemos parte, gerar esse pertencimento, porque existem movimentos muito fortes que nos deixam alheios a essas situações. O Içá tem uma estrutura de debate muito forte ligado ao meio ambiente. Por isso que a gente trabalha com os mitos, por isso que a gente trabalha com as lendas, por isso que a nossa música fala de caboclo, fala de rio, fala de visagem, fala de seres da mata, fala da chuva, de Iaci, de jaci”, afirma Marcos.

O terceiro CD do grupo está em fase de produção e trás o título ‘Batuque de todas as rodas’. O título fala de diversidade. “A gente é o grupo da diversidade. Da diversidade realmente, então: amigos, amigas, amigues. A  gente leva também essa pauta social e defende a igualdade de gênero. E trabalhamos projetos que colocam a mulher como agente de mudança e de transformação. O Iaçá trabalha a diversidade porque ele olha para o ser humano e isso para mim é uma das coisas que mais me ganhou no projeto. Olhar para o ser humano que está aí dentro desse contexto”, diz Marquinhos.

Para o musicista, o papel do Estado é regulamentar, organizar e criar estruturas que possibilitem a democratização da cultura e possibilitem ao povo acessar e produzir os bens culturais. “A gente está em um momento decisivo agora, então isso tem muito haver com quem nós escolhemos como governantes, quem nós escolhemos como político que vai estar lá dentro da câmara verificando essas demandas, essas necessidades, porque precisamos aprender que as políticas públicas, a democratização da cultura depende de quem está lá”, diz Marquinhos. Afirma ainda ser assustador ver como a cultura tem sido rotulada e desvalorizada. “Então o que falta pra gente mesmo é que esse processo democrático se fortaleça cada vez mais e as políticas públicas sejam benéficas para todas as camadas sociais”, sentencia o educador musical.  

Para Dircélia Moraes, coordenadora de produção cultural do grupo Iaçá, resistir e manter a cultura popular viva é um desafio. “Essas atividades artísticas são ferramentas de reflexão e intervenção sobre a realidade, nesse sentido são importantes no espaço da periferia, pois auxiliam no processo de transformação social”. O trabalho do Iaçá é mobilizar e empoderar a periferia para que sejam produtores de cultura, refletindo sobre suas realidades e o território que estão estabelecidos, essa mesma periferia se torna exportadora de conteúdo cultural quando suas produções são levadas para fora de seus limites. Hoje, o Iaçá se apresenta em palcos por toda a cidade, levando cultura, reflexão sobre o meio ambiente e a Amazônia, possibilitando o protagonismo da periferia.

 Segundo Marcos, apesar dos desafios, é muito gratificante, compensador e realizador trabalhar cultura na periferia, com pessoas que geralmente são desassistidas das políticas públicas. “É gratificante quando você percebe que conseguiu entrar na comunidade e fazer esta comunidade perceber a importância da nossa identidade cultural e não perder isso”, afirma.

Fotos: Harison Lopes