À medida que pastos e lavouras sedentas ressecam a Amazônia, os povos do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, tentam adaptar práticas agrícolas tradicionais para mitigar os impactos das mudanças climáticas na região.

Por André Cabette Fábio

O som grave de flautas de bambu emerge das sombras de uma oca indígena em meio à floresta amazônica, seguido por dançarinos de corpos pintados e músicos marcando o ritmo com os pés sob o sol da tarde escaldante. Variações desta cena se repetem há gerações na aldeia Tanguro do povo Kalapalo, no Parque Indígena do Xingu. 

Mas, no lugar do telhado tradicional de sapé, a oca está recoberta por uma lona plástica branca, decorada com o logotipo de uma marca e o aviso em inglês “apenas para uso agrícola”. O telhado é um dos vários sinais da expansão da pecuária e do cultivo de soja na borda sudeste da Amazônia, uma região altamente desmatada, onde a floresta tropical vem se aquecendo mais rapidamente, e em que a estação seca já ganhou várias semanas nas últimas décadas. 

Fardos de sapé apoiados contra uma oca cujo teto de lona plástica está sendo substituído pelo material tradicional na aldeia Tanguro, no Parque Indígena do Xingu. (Foto: André Cabette Fábio/ Thomson Reuters Foundation)

Conforme a floresta fica mais seca e inflamável, as comunidades do vasto território, lar de 16 grupos étnicos e mais de 6 mil pessoas, estão adaptando antigas práticas agrícolas para proteger a terra e produzir comida o bastante para se sustentar. 

Homens lutam “huka-huka” durante o ritual funerário Kuarup na aldeia Tanguro do povo Kalapalo, no Parque Indígena do Xingu. Ao fundo, as tradicionais ocas cobertas por lona plástica l(Foto: André Cabette Fábio/ Thomson Reuters Foundation)

Eles vivem no Mato Grosso, o centro de produção de soja e carne bovina do Brasil, cercados por pastagens e lavouras que impulsionam as exportações do país. 

Mas estão ficando sem água, e precisam de ajuda do governo para compensar as colheitas fracas de alimentos básicos. 

Córregos e nascentes estão secando à medida que proprietários privados derrubam árvores e convertem pastagens de baixa produtividade em lavouras de soja sedentas por água. 

Para os moradores indígenas e para o resto do mundo, a conservação da Amazônia é crucial. A floresta tropical absorve e armazena grandes quantidades de dióxido de carbono, um vetor do aquecimento do planeta, e regula os padrões de chuva na América do Sul e em outras áreas. 

À medida que a Amazônia é derrubada, o carbono deixa de ser absorvido e passa a ser liberado na atmosfera.

Ponto do não retorno

Cientistas afirmam que as altas temperaturas, a estação seca mais longa, o desmatamento e as altas taxas de queimadas tornam o sudeste da Amazônia vulnerável a um “ponto de não retorno”. 

Uma vez que um ponto de não retorno é atingido, é impossível voltar atrás – a natureza é empurrada para um ciclo vicioso de autodegradação. 

A floresta entraria em colapso, tornando-se uma versão degradada de si mesma ou até uma savana – um ecossistema mais seco, coberto por gramas e algumas árvores – de acordo com uma teoria do climatologista brasileiro Carlos Nobre. 

Conforme as temperaturas e o desmatamento aumentam, reduzindo a sombra e a umidade, grandes áreas da Amazônia já se tornaram mais propensas a queimar em incêndios florestais, de acordo com especialistas. 

Em que medida, e exatamente onde o ponto de não retorno fica na Amazônia é tema de um contínuo debate científico. 

Pesquisa publicada em 2021 pela Nature descobriu que o sudeste da Amazônia já emite mais carbono do que absorve, um sinal de que mais vegetação está morrendo do que se desenvolvendo. 

Frequentemente, fazendeiros têm uma visão diferente, que distancia suas ações das mudanças climáticas. 

“O ser humano influencia muito pouco na questão do clima”, disse Endrigo Dalcin, produtor de soja e conselheiro da divisão local da associação de produtores Aprosoja. 

“Nossas chuvas são muito dependentes dos oceanos,” acrescentou. 

Um estudo publicado em setembro na revista científica Nature Communications mostrou, no entanto, que o desmatamento foi responsável por 74% da redução das chuvas na estação seca da floresta amazônica desde 1985. 

Alguns cientistas dizem que manifestações locais do ponto de não retorno já podem estar ocorrendo no território do Xingu. 

Segundo moradores, agricultura e pesca vêm ficando mais difíceis conforme os níveis dos rios baixam e as florestas se aquecem. 

“A gente nunca imaginou que ia chegar nesse ponto aí, com um rio seco, em que a gente tem que passar empurrando o barco em alguns lugares”, afirmou o estudante de enfermagem Sikan Kalapalo.

“Hoje a gente está com escassez de alimentos. E as plantações não estão dando mais”, disse.

Controle de incêndios

Há gerações os povos indígenas do Xingu usam o fogo para limpar terras para  pequenas roças, uma intervenção que geralmente tem baixo impacto, já que as áreas são abandonadas após alguns anos, permitindo que a floresta se regenere. Desde os anos 2010, as comunidades vêm precisando tomar mais precauções para manter as chamas sob controle. 

Bombeiros do PrevFogo acendem queimadas controladas para limpar terras para dar espaço a uma plantação de mandioca, no Amazônia, Parque Indígena do Xingu. (Foto: André Cabette Fábio/ Thomson Reuters Foundation)

Agora, as queimadas são realizadas com o apoio do PrevFogo, uma brigada de incêndio administrada pelo governo federal, que arregimenta moradores locais. 

Numa tarde recente, o agricultor Yunak Yawalapiti assistia enquanto agentes do PrevFogo ateavam fogo a um trecho de floresta de 700 metros quadrados para abrir espaço para sua roça de mandioca. 

Em poucos minutos, um brigadista soprou um apito de alerta, sinalizando que as chamas tinham escapado para a mata, e convocando os agentes para correr com bombas d’água. 

O agricultor lembrou que na década de 1990 a mata era tão úmida que as chamas não se espalhavam mesmo ao meio-dia. Agora, “você pode queimar em qualquer hora que o fogo vai embora, fecha tudo. Parece que tem gasolina naquele lugar.”

Até o final dos anos 2000, o Xingu nunca tinha tido mais de 10 mil hectares de matas incendiadas em um ano, mesmo com as queimadas para roças ocorrendo sem supervisão nenhuma. 

Dados mais recentes do consórcio de mapeamento MapBiomas mostram que mais de 60.000 hectares queimaram no Xingu em 2024, sinal de que o território está mais propenso a incêndios, uma mudança prevista por cientistas conforme florestas se aproximam de seus pontos de não retorno. 

No ano passado, incêndios queimaram o dobro de área florestal na Amazônia em comparação com o recorde anterior de 2016, segundo 40 anos de dados do MapBiomas. 

Análises técnicas apresentadas em 2023 no Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos encontraram uma ligação entre o desmatamento e a vazão mais baixa na bacia do Rio Xingu. 

Nadando no Rio Xingu próximo à aldeia Tanguro, o estudante de mestrado em linguística Taliko Kalapalo apontou para crianças pulando e chutando água perto de uma praia de areia. “Lá costumava ser bem fundo”, ele disse. “A gente teve que mudar o porto de lugar depois que o rio baixou”, continuou.

Em visita à aldeia, Adeal Carneiro, vereador em Querência, município onde parte do território do Xingu está localizado, disse que o uso de água pelo agronegócio contribui para o ressecamento.  “Você imagina irrigar aí 500 mil, 2.000 hectares com água dia e noite? É água pra caramba”, disse.

A alta das temperaturas e a seca também levaram a perdas de safras de mandioca, que a população usa para produzir beiju, parte da cesta básica do Xingu. 

Sikan Kalapalo, que mantém uma pequena plantação de mandioca próximo à oca de sua família, disse que as comunidades estão dependendo mais de cestas básicas do governo ou de programas de transferência de renda para comprar comida. “A gente não pode ficar dependendo de apoio para sempre. Vamos precisar mudar como produzimos nosso alimento ”, ele disse.

O uso do fogo como instrumento de conservação ambiental

Um levantamento realizado pelo projeto Voluntariado no Manejo Integrado do Fogo, em 2023, identificou cerca de 200 brigadas voluntárias e comunitárias voltadas para a prevenção e combate de incêndios florestais e outras iniciativas de conservação no Brasil. Entre estas, aproximadamente 23% são de brigadas comunitárias indígenas.  

Em 2022, o grupo de brigadistas formado por indígenas das etnias Kuikuro e Kalapalo, da região do Alto Xingu, criou, em parceria com o Instituto Socioambiental, um Plano de Manejo Tradicional do Fogo. O plano funciona como uma ferramenta de diálogo entre os brigadistas do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a comunidade indígena, a fim de ajudar a demonstrar quando e como realizar queimas seguras. 

“Os povos do Xingu, de um modo geral, utilizam o fogo para muitas atividades que são importantes. O fogo em outros tempos, no passado, também ajudou a fazer as paisagens que existem no Xingu. Antes não era perigoso, mas agora está perigoso, pois o Território está sofrendo com os incêndios florestais, principalmente, depois de 2010. Mas, mesmo assim, é preciso utilizar o fogo. É preciso entender como usar ele, combinado com o tempo”, afirma Peiecu Kuikuro, liderança da Associação Indígena da Aldeia/Comunidade Kaluani.  

Edição:  Anastasia Moloney e Ellen Wulfhorst.

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Conteúdo produzido originalmente pela Thomson Reuters Foundation e cedido para a publicação na agência Carta Amazônia. A Thomson Reuters Foundation é o o braço beneficente da Thomson Reuters.

Foto de capa: André Cabette Fábio/ Thomson Reuters Foundation.

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