ESPECIAL DIA DA MULHER
Por Cecília Amorim
Pelas ruas da Cremação, bairro da periferia de Belém, todos conhecem dona Vilma da Silva. É ali, numa rua de chão batido, às margens de um esgoto a céu aberto, numa casa de madeira de dois andares, em condições precárias, que ela vive com a família. Mulher preta, de olhar firme e sereno ao mesmo tempo, a aposentada de 55 anos tem a resiliência como uma de suas principais qualidades. Ao longo da vida teve dez gestações, sete partos e apenas quatro filhos vingaram até a fase adulta.
A primeira gravidez foi aos quinze anos, contra a sua vontade, após ser violentada pelo namorado. Quando descobriu a gravidez seu pai lhe deu uma surra e a mandou embora de casa. Na época foi obrigada a morar na casa do mesmo homem que a violentou. A única opção que lhe restava naquele momento. “Isso já faz quarenta anos”, lembra dona Vilma. Após o nascimento da primeira filha, os anos seguintes foram marcados pelas nove gestações.
O único “menino homem”, como ela diz, que viu crescer, morreu em seus braços com cinco tiros, a pouco metros de sua casa. “Dizem que ele estava mexendo com coisas erradas. Apareceu no jornal, todos falavam do CPF cancelado, mas para mim, era o meu menino ali”, conta, emocionada. O menino que ela alimentou em seu seio, que viu falar a primeira palavra, que ensinou a andar, que levava todos os dias para a escola, agora estampava a capa de um jornal da cidade com o rosto desfigurado e o corpo coberto por sangue.
Dona Vilma não sabe ler. O pai não permitiu ela ir à escola e se alfabetizar para não escrever cartinhas para namorados, como ela mesma conta. Eram tempos muito mais complicados para as mulheres. Ela nasceu em uma das muitas ilhas que cercam a capital paraense. Após separar do marido e romper uma relação marcada pela violência, ela veio para a cidade para que os filhos pudessem estudar. Só duas conseguiram terminar o ensino médio, o que é o seu maior orgulho.
Como não consegue sobreviver com a renda de um salário mínimo, que recebe da aposentadoria, principalmente devido à compra dos medicamentos de uso contínuo, dona Vilma também trabalha como vendedora de cosméticos. Todos os dias, faça chuva ou faça sol, ela percorre as ruas do bairro com seu catálogo de vendas e uma sacola com perfumes. A neta mais velha é quem ajuda a avó a preencher a ficha de pedidos da revista.
No domingo passado, nas primeiras horas da manhã, dona Vilma, que é avó de quatro crianças, levou três delas para a Praça Princesa Isabel, a poucos metros de sua e casa e às margens do rio Guamá. No espaço tem um porto bonito para receber os turistas que querem conhecer a ilha do Combu, localizada na outra margem do rio. Enquanto acompanha a brincadeira dos netos, alguns jovens com roupas de banho tomam cervejas em um banco próximo. Impossível não escutar a conversa acalorada ao redor.
Um rapaz diz que as mulheres hoje podem ser o que quiserem. Uma moça de saia longa e cabelos que voam no vento ressalta que isso é graças a luta de mulheres como ela. Outra, de cabelos curtos, afirma que a Simone de Beauvoir tinha razão, e que não se nasce mulher, “nos tornanos mulher através do conhecimento de si mesma”. Uma terceira jovem, de cabelos encaracolados e óculos escuro, diz que são tempos difíceis para as mulheres e que não se sente segura em lugar algum. “É preciso lutar contra o machismo e o patriarcado que rege a nossa sociedade e tenta enfiar goela abaixo um padrão do que é ser mulher”.
Dona Vilma pensa um pouco sobre o que está escutando, ela não sabe quem é Simone de Beauvoir, mas desde que pariu suas filhas teme o futuro. E sobre as mulheres poderem ser o que quiserem, a aposentada não tem tanta certeza disso. Essa frase pode ser verdade para aquelas moças brancas bem cuidadas, mas na sua realidade ela sabe que não é bem assim. Sua filha mais velha, Joana, gostava muito de ler, queria ser professora, começou a trabalhar para ajudar em casa com doze anos, com dezesseis teve o primeiro filho e nunca conseguiu terminar o colegial.
Valdinéia, a segunda filha que vingou, foi trabalhar na casa de uma família rica com quatorze anos. A patroa era funcionária pública e o marido diretor de um presídio. O casal prometeu ajudar a menina a estudar em troca de companhia para a filha adolescente. Valdinéia queria ser médica. A menina trabalhava de cinco da manhã até a meia-noite e voltou de lá grávida do filho dos patrões. Foram dias difíceis. Quando a criança nasceu, segunda filha de Vilma começou a trabalhar na Feira do Porto da Palha e nunca mais voltou a estudar.
Jaciara, a terceira filha, era muito boa com números. Na escola todos os professores elogiavam muito a menina. Ela gostava muito de desenhar, não podia ver um pedaço de papel que já começava a construir linhas e traços até ganhar as mais variadas formas. Na infância, venceu um concurso de desenho na escola, teve até prêmio. Quando terminou o ensino médio foi trabalhar de caixa numa rede de supermercado, fez o Enem por dois anos e conseguiu passar na universidade federal, mas os horários eram complicados e ela não poderia deixar o trabalho. Trancou a faculdade.
Hoje Jaciara trabalha no berçário de um shopping no centro da cidade e cuida de crianças o dia inteiro. Ela ainda não desistiu de seus sonhos e diz que um dia vai passar em um concurso público e vai dar uma vida mais tranquila para a mãe. Mas, os horários de trabalho no shopping não permitem que ela tenha tempo para estudar e nunca sobra dinheiro para nada, muito menos para pagar cursinho preparatório. “Esse papo de mulher poder ser o que quiser ainda não chegou em casa”, afirma Vilma, atenta na conversa ao lado.
Na praça, a movimentação de turistas aumenta. Uma das netas corre até ela pedindo para brincar no pula-pula. Ela nega e explica de forma carinhosa que, infelizmente, não é possível. “São três netos, cinco reais para brincar cinco minutos, se for um os outros também querem. Quinze reais gastos em cinco minutos são muito no meu orçamento apertado”, ressalta.
. Dona Vilma não sabe escrever, mas faz as contas de cabeça. Valentina tem apenas seis anos, ainda não entende algumas coisas, mas já sabe que quando a avó diz não é não mesmo. Ela arruma o cabelo crespo da neta que soltou do elástico e pede para que ela volte a brincar no balanço. Dos três balanços da praça, dois estão quebrados, então ela tem que aguardar desocupar para poder brincar. Enquanto Valentina aguarda sua vez no brinquedo, Vilma faz uma prece para que boas oportunidades também cheguem à vida de suas netas. Quem sabe elas consigam ser doutora. Quem sabe as minhas netas sejam o que elas, de fato, desejam ser.