Nada Sobre Nós Sem Nós: o levante popular que marcou a COP30
A COP30 pousou em Belém como quem chega pelas águas: devagar, precedida pelo rumor das marés e pelo burburinho das gentes que anunciam mudança. Entre 10 e 21 de novembro, a UNFCCC escolheu a Amazônia — não os grandes centros, não as capitais do poder — como palco de sua 30ª Conferência das Partes. Pela primeira vez, o mundo se inclinou sobre uma cidade que não figura no mapa das metrópoles globais, mas que pulsa no coração da floresta, onde a crise climática é mais que um conceito: é território ferido, imaginário disputado, cicatriz e resistência.
E quando os últimos discursos silenciaram, a pergunta ficou suspensa no ar da cidade: Afinal, foi fracasso ou foi triunfo?
Tudo depende do ângulo de quem olha.
No plano institucional, o resultado foi pálido, quase uma sombra — mesmo para os padrões minimalistas das COPs. Lá, onde as mesas longas esperam consensos impossíveis, quem dita o peso das palavras são os países ricos e as corporações que moldam seus governos. Espera-se que os arquitetos do colapso reconheçam sua própria obra e paguem a fatura. Às vezes admitem culpas, sussurradas, mas jamais a ponto de arriscar os lucros que inflamaram o planeta.
Mas, do lado dos povos — dos que enfrentam o capitalismo não como teoria, mas como tormenta cotidiana — ali, sim, houve vitória. A imagem que atravessou fronteiras não saiu de documento algum, mas das águas cabanas do Guamá e do Guajará: mais de 200 embarcações, 5 mil vozes, 60 países reunidos numa barqueata que virou símbolo e ferida aberta. Na zona azul, o fogo no pavilhão dos países não ofuscou o que realmente incendiou as manchetes: o levante indígena, tomando o espaço que é seu por direito ancestral. Dessa força nasceram conquistas — 10 demarcações reconhecidas, um recuo simbólico na privatização do Tapajós.
Na Cúpula dos Povos, na COP do Povo e nos encontros que brotaram como sementes ao vento, reafirmou-se um princípio antigo: não precisamos de mapas desenhados por quem lucra com a destruição. Não há solução capitalista para a ruína produzida pelo próprio capitalismo. A resposta fala em nheengatu, em tupi, em crioulo, em quilombo, em periferia. A resposta anda descalça, carrega território no corpo, resiste há séculos às cercas impostas, aos projetos ecocidas, às engrenagens que moem vidas e rios.
Esses dias em Belém reacenderam a certeza de que só haverá saída se nossas vozes ocuparem o centro e se nossos territórios forem protegidos da grilagem, da especulação, das invasões. É urgente demarcar todas as terras indígenas, titular todas as terras quilombolas, avançar numa reforma agrária popular e numa reforma urbana que mire a qualidade de vida nas periferias. O Brasil, que se anuncia como protagonista climático, precisa honrar a palavra — mas como levar adiante esse compromisso se, poucas semanas após defender petróleo na foz do Amazonas, nada se fez avançar no tal Mapa do Caminho?
É preciso estancar a sangria: parar de abrir poços como quem abre feridas; interromper os dendezais e o agronegócio que expulsam, envenenam, silenciam comunidades camponesas, ribeirinhas, indígenas e quilombolas. Como negociar dignidade se o agronegócio, setor que responde por 74% das emissões de gases de efeito estufa e pela maior parte da violência no campo segue intocado e protegido atrás de numerosas cadeiras no congresso e aliados poderosos no judiciário e no executivo?
Outro fruto desses dias foi o renascimento da pauta da Amazônia urbana. Desde que existimos, na Agência Carta Amazônia, sabemos que esse território é mais complexo do que os olhos do sul-sudeste costumam enxergar. Belém foi alvo de xenofobia e neocolonialismo travestidos de dúvida: “será que essa cidade dá conta?” Até jornalistas especializados em Amazônia repetiram preconceitos fatigados. Mas a Amazônia não é só verde. É multilinguismo, é batuque, é asfalto quente, é trânsito caótico, é cheiro de açaí ao meio-dia. É floresta, sim — mas também é cidade, com seus brilhos e suas faltas, com sua cultura viva e suas contradições.
É verdade que tivemos limitações — como qualquer cidade teria ao sediar algo pela primeira vez. Também tentaram ridicularizar o Brasil quando recebeu a Copa e as Olimpíadas. Há quem prefira mirar o Norte com o olhar colonizador de sempre. Como lembrou Paulo Freire, quando a aprendizagem não liberta, o sonho do oprimido é vestir a roupa do opressor. E muitos sudestinos a vestem com gosto.
O racismo ambiental — estrutural, histórico — atravessa as páginas da Carta de Belém e os debates oficiais, mas também atravessa as ruas de nossa Amazônia urbana: índices baixos, saneamento ausente, direitos negados. Queremos que essa pauta permaneça viva, não apenas para discutir como receber visitantes, mas para denunciar o que nossas periferias enfrentam todos os dias. Como agência afro-amazônica, seguiremos apontando as obras que levantam muros ao redor das elites e deixam as baixadas à própria sorte.
No fim da COP, o destino brincou de metáfora: Remo na Série A, Paysandu na Série C — duas torcidas gigantes, duas paixões amazônicas, reflexos de gestões e rumos distintos. Assim são nossas cidades: múltiplas, contraditórias, verdadeiras. Que a Amazônia urbana não sirva para diminuir Belém — porque recalque não constrói, apenas dói.
E que nossa cultura, esta que nasce da terra firme, dos rios, das palafitas, das roças e das vielas, siga ganhando o lugar que merece. Belém é exuberante, mas a Amazônia é um continente: os bois Caprichoso e Garantido, a picância da Damurida, a força negra do Marabaixo, o canto ancestral do Arraial Flor do Maracujá, o espírito do Mariri Yawanawa. De Belém a Rio Branco é mais longe do que de Belém a São Paulo — lembrança de que nossa imensidão não cabe em mapas e preconceitos ávidos por nos reduzir.
A Amazônia é vasta.
Nossa diversidade, maior ainda.
E nossa resistência — essa, sim — é infinita