Por Eraldo Paulino

Há quem diga que coincidências não existem. Eu ainda não tenho opinião formada sobre quem ou o que é responsável pela costura de retalhos da nossa existência, mas hoje me deu vontade de acreditar, ao menos, que há forças boas nos acompanhando. É que eu vi minha filha, Paula, dançar quadrilha na festa junina da escola “vestida de menino”, em pleno 28 de junho, Dia do Orgulho LGBTQIA+. E não, não estou dizendo que minha filha caçula, aos oito anos de idade, é lésbica, trans, assexuada ou não binária. Estou enaltecendo o fato de que ela se apresentou assim após ela própria informar (assim mesmo) professora e coordenadora pedagógica que não usaria saia, porque não se sente bem com tal vestimenta.

Meu amigo e vereador em Belém, Fernando Carneiro (PSOL), costuma dizer que a luta da população LGBTQIA+ melhora o mundo. E é verdade! Fiquei pensando em quantas meninas já foram forçadas a se vestir conforme uma convenção determina, quantos meninos passam por situação semelhante. No fim das contas, o simples gosto por vestuário impõe mais do que rótulos ou zoeira. Em última instância, impõe alvo na testa de quem não quer seguir a maré das convenções. Da mesma forma como o machismo não afeta apenas as principais vítimas, as mulheres, mas também prejudica nós homens, a liberdade de podermos vestir o que quisermos, brincar com o brinquedo que dê vontade, escolher a cor que preferir é sim uma conquista de todas, todos e todes.

A dança deve ter durado o que? 10 minutos? Talvez menos. Mas enquanto ela dançava, sorria feliz e se concentrava nos passos – e algumas lágrimas hidratavam minha face – eu recordava algumas coisas sobre a Paula. Lembro de ela chegar comigo aos três anos de idade e dizer que queria ter um pinto, porque “não gostava de fazer pipi sentada”. Queria fazer em pé. Dela dizer que queria ser menino. Das mãos deliciosas acarinhando meus cabelos curtos manifestar o desejo de ter um corte igual. E de como eu sinto alívio e aflição cada vez que ela diz ou faz algo assim. Alívio por saber que ela tem uma família que vai dar apoio incondicional, seja qual for a orientação sexual ou identidade de gênero que ela tenha. Pânico por saber que vivemos num dos países que mais mata essa população.

Também vale exaltar o papel da escola nessa inclusão. Meu coração já aqueceu logo que cheguei ao colégio e vi um vizinho meu, adolescente, usando batom. Ele estava de boa, interagindo com amigas e amigos, e usando um batom rosa, lindo. Eu não o elogiei, mas a Dalva, mãe da Paula o fez. Já a professora da Paulinha fez apenas uma ponderação diante da exigência da moça: E como ficam os passos que envolvem a saia? Achei ótima a solução que ela encontrou. A quadrilha tinha duas partes. Na principal, com músicas tradicionais da quadra junina, ela fazia par com outra menina. Logo que vi achei estranho, e também fiquei um pouco decepcionado. Porém, notei minha filha esbanjando felicidade no rosto, então percebi que para ela estava tudo bem – ela não disfarçaria. Aí eu comecei a pensar: Por que casal precisa ser só de menino com menina?

Mas eis que, num dado momento, os meninos formam um círculo maior, ajoelham e só as meninas formam uma roda ao centro, para dançar ao som de “Voando pro Pará”, da Joelma. Nessa etapa, Paula acompanha a par dela, sendo a única com calça comprida e chapéu no meio de um monte de mocinha de vestido. Nossa! A felicidade que me bateu no coração de não perceber ninguém além da mãe e eu achando aquilo extraordinário foi tão incrível! Eu fui imaginando como eu iria reagir a comentários escrotos que fizessem ao meu lado. Brigaria? Ignoraria? Denunciaria pra polícia? Chamaria o Chapolin Colorado? Não fazia ideia!

E como o editor da vida estava querendo que eu acreditasse mesmo que coincidências não existem, ainda ocorreu que o DJ errou a música seguinte, quando a dança voltava à formação tradicional. Então a parte das meninas em destaque foi repetida, e Paula lá, dançando sobre meus medos. Então eu relaxei. Parei de pensar e apenas curti a minha filha dançando. No fim das contas é só isso, né? Infelizmente, não. A luta é composta por derrotas, que precisam ser lamentadas. Todas elas. E também é composta por avanço nas trincheiras da opressão. Então é necessário, sim, exaltar a inclusão que a escola promoveu, que a professora acolheu, e que uma das minhas crias reivindicou.

Sabe, já ocorreu de eu saber fofoca sobre pessoas que não queriam mais a Paula por perto, depois que ela começou a se vestir como queria. Ela mesma já precisou ter que convencer algumas tias no playground de que era menina, apesar de estar vestida diferente. Já sabemos lidar com vendedores que, afoitos pela comissão oferecem a ela saias, vestidos, bermudinhas cheias de corações e borboletas. Nós aguardamos o momento conveniente de agradecer e ir à seção masculina escolher o que ela prefere. Nesses oito anos já passamos por bastante coisa, mas esse medo da transfobia, da lesbofobia, do que as pessoas são capazes de fazer por ódio às diferenças ainda me toma algumas vezes. Mas ela estava tão feliz hoje, por dançar com as amigas e os amigos dela sendo ela mesma, que agora estou transbordando orgulho e esperança.