Movimento dos jornalistas do Grupo RBA incomodou os Barbalho. Novo aumento depois do obtido pela greve veio somente em 2023.

Era 16 de setembro de 2013 quando o jornalista Leonardo Fernandes, do Diário do Pará, foi chamado ao departamento de Recursos Humanos do Grupo RBA para ser informado que sua jornada de cinco anos no veículo tinha acabado. A justificativa da funcionária foi: “Nada, só demissão. A empresa pode te demitir a qualquer momento”. O jornalista dirigiu-se para a saída, não sem antes passar na redação e informar para os colegas que havia sido demitido, que o Diário do Pará estava coagindo seus empregados e chamando todos para uma greve que em breve estouraria e faria história no jornalismo paraense.

Leonardo não foi o primeiro jornalista desligado em tentativa de retaliação da movimentação dos jornalistas, mas sua demissão foi o estopim que inflamou os ânimos dos trabalhadores que amargavam condições indignas para qualquer veículo de comunicação. Principalmente para o jornal que pertence ao Grupo RBA, da família do atual governador do Pará, Helder Barbalho, e do Ministro das Cidades do governo Lula, Jader Barbalho Filho que, na época da greve, era diretor presidente do grupo. Atualmente, o cargo está sendo ocupado por Camilo Centeno.

Em 2013, o Diário do Pará ganhou cinco prêmios no “The International Newsmedia Marketing Association (INMA) Awards”. Enquanto isso, os trabalhadores daquele que orgulhosamente se auto intitulava na época o jornal “mais premiado do mundo” denunciavam a água suja e amarela do bebedouro, a falta de equipamentos adequados de segurança para as equipes que cobriam pautas de Polícia e, diariamente, colocavam a vida em risco em busca de notícias. As centrais de ar da redação não tinham manutenção adequada, os carros que carregavam equipes todos os dias tinham problemas mecânicos que demoravam meses para serem corrigidos. À noite, próximo ao fechamento, no horário de pico, não raro precisavam revezar computadores porque não havia nem mesmo onde sentar por falta de cadeiras e máquinas suficientes.

Soma-se a isso o assédio moral que levou à demissão de Leonardo, o mesmo assédio que mais a frente levou uma funcionária do RH para o portão da empresa, bloco e caneta nas mãos, anotando os nomes daqueles que estavam protestando. Tudo mascarado por um clima de coleguismo, alegria, camaradagem e mesmo risadinhas sobre a cadeira que quebrava com a funcionária grávida em cima. Mas até que ponto um ambiente de trabalho pode ser saudável sem condições dignas para os empregados e empregadas realizarem suas funções?

A grevista solitária

O primeiro indicativo de paralisação geral da categoria seria aprovado ainda em agosto, na sede do Sindicato dos Jornalistas do Pará (Sinjor-PA), em Belém. Neste dia, foram rejeitadas as contrapropostas de acordo coletivo apresentadas pelo Diário do Pará e pelo Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do Pará (Sertep).

A campanha salarial do Sinjor, chamada “Jornalista Vale Mais”, estava promovendo uma série de atos públicos abordando principalmente a questão salarial. Os jornalistas de todo o grupo Rede Brasil Amazônia de Comunicação (RBA) afiliada à Rede Bandeirantes, que inclui a TV, o portal Diário Online (DOL) e o impresso Diário do Pará recebiam salários bastante abaixo do piso salarial de outros estados, levando em conta que, nacionalmente, o salário da categoria já é considerado baixo. Essas questões já tinham sido apresentadas à direção da empresa desde abril de 2013, sem qualquer avanço nas negociações.

A greve do Diário do Pará e DOL durou sete dias intensos (Foto: Tarso Sarraf/arquivo)

Após atos em frente a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE-PA) e um ato com pouquíssima adesão dos trabalhadores da empresa em frente à própria RBA, o ato do dia 11 de setembro finalmente chamou mais atenção: jornalistas fizeram um panelaço na recepção da empresa exigindo atendimento das suas demandas, fechando uma das principais avenidas de Belém. Em 13 de setembro, a manifestação foi em frente à Record de Belém. Neste dia, a jornalista Cristiane Paiva, da TV RBA, postou o próprio contracheque no Facebook e recebeu o primeiro “aviso”.

“As pessoas acham que, porque você trabalha numa emissora que estava em ascensão, você ganhava muito. Eu recebia 1.200 reais, que era ainda mais que o pessoal do jornal impresso. Com os descontos, fica quase nada. Então diversas vezes, mesmo tendo outro emprego, eu chegava no final do mês e falava ‘Quê isso? Eu estou trabalhando que nem louca!’. Eu tinha dois empregos, atravessava a cidade inteira, várias vezes eu me via comendo besteira porque não tinha dinheiro, tudo isso vai te sufocando, sabe?”, conta Cristiane.

Depois da postagem expondo a simples realidade de um dos maiores grupos de comunicação do Pará, ela foi chamada por um de seus gestores. “Nunca vou esquecer disso. Ele disse que era uma menina incrível, inteligente, que apostava todas as fichas em mim, mas que eu estava decepcionando, não sabia onde estava me enfiando e com quem estava me metendo. Eles me dariam uma segunda chance para eu não compactuar com tudo isso”, relembra.

Não só compactuou, Cristiane Paiva subiu na bancada da Câmara Municipal de Belém em sessão especial sobre a situação dos jornalistas paraenses e deu seu relato. Sua fala foi gravada, a chefia soube e ela foi desligada na porta da empresa, sem sequer poder entrar, um hábito que o grupo adotaria em mais demissões que viriam pela frente. Dias depois, a decisão foi revogada e Cristiane foi readmitida. Quando a greve estourou, ela foi uma das primeiras na linha de frente. No entanto, foi a única da TV que deu esse passo.

Amparados pelo sindicato para legitimar a greve, os jornalistas do Diário do Pará começaram um trabalho de formiguinha, no boca a boca, chamando todos para uma reunião fora da entidade, na época sob a gestão de Sheila Faro. “Fiquei surpreso quando vi a sala do Elias lotada, todo mundo apreensivo, mas muito disposto. Eu não tinha nada a perder, estava frustrado, sem grana. As pessoas falavam ‘E o nome? Você vai se sujar no mercado de Belém’, mas na época eu estava tão tomado por aquilo que não pensei nisso”, comenta Adison Ferrera, um dos grevistas.

A manifestação se concentrou em frente da sede da empresa de comunicação, numa das principais avenidas de Belém (Foto: Tarso Sarraf/arquivo)

A assembleia que aprovou a greve só aconteceria no dia 14 de setembro e o aviso só seria protocolado no grupo no dia 18. No entanto, foi naquele mesmo dia 11, ali na casa do jornalista Elias Serejo, atrás do Bosque Rodrigues Alves e bem perto da RBA, que a decisão foi, de fato, tomada. Havia, inclusive, a possibilidade de grevar sem o sindicato, caso a direção desse para trás, um reflexo da pouca confiança e dos trabalhadores na entidade, resultado de anos de estagnação e ações precárias em nome da categoria, que clamava por mais respeito e menos apertos de mão com patronais e entidades do empresariado paraense.

Leonardo Fernandes foi um dos participantes da assembleia que aprovou a greve. Ao ser demitido, numa tentativa da empresa de retaliar os trabalhadores e impedir o movimento, ele foi simples na sua fala “BORA GREVAR NESSA P*”. E assim foi.

Sete dias

Piquetes, panfletagem, atos de queima de jornais, atuação ativa nas redes sociais com tuitaços, página específica para updates da greve e constantes trocas de e-mail com colegas da redação chamando-os para a luta. A greve do Diário do Pará e DOL durou sete dias intensos, repletos de aprendizado, reuniões, suor, cansaço e muito incômodo para os Barbalho.

Poucos veículos de comunicação não ativistas noticiaram a greve, o que mostra o pacto tácito entre aqueles que estão no poder da comunicação paraense. “Imaginava-se no início que jornais e emissoras concorrentes do grupo RBA falariam da greve por se tratar de empresas concorrentes, entretanto, prevaleceu uma divisão de classes: os donos de outros veículos de comunicação ficaram ao lado dos donos da RBA – que, embora concorrente, pertence à mesma classe, a classe dos patrões – e omitiram um fato que estava acontecendo na cidade”, pontuaram os jornalistas Raphael Castro e Danuta Leão no artigo “JORNALISTA VALE MAIS: A IMPORTÂNCIA DA PROFISSÃO ANALISADA NA GREVE DO JORNAL MAIS LIDO NO PARÁ”.

Movimento paredistas ficou conhecido como a “Revolução dos Gatos Pingados” (Foto: Tarso Sarraf/arquivo)

O já extinto portal ORM, pertencente ao Grupo Liberal, concorrente direto do Grupo RBA, chegou a dar um pequeno espaço no site, logo apagado. Felizmente, na era do desabrochar das redes sociais, a greve teve grande visibilidade em blogs independentes e sites nacionais, com apoio de jornalistas como Duda Rangel e Leonardo Sakamoto em sua coluna no UOL.

E era nesses portais que o Grupo RBA também buscava se defender. Em entrevista para o Portal dos Jornalistas no dia 24 de setembro, ainda no meio da greve, Gerson Nogueira, diretor de redação do Diário do Pará na época, contou que “Apesar dessas reclamações, nossa média salarial hoje é de R$ 2,6 mil, superior inclusive à de cidades como Salvador e Recife”. Uma colocação infeliz que resultou em uma ação efetiva dos grevistas, ao compartilhar seus próprios contracheques nas redes sociais, inspirados por Cristiane Paiva.

Um deles foi Eraldo Paulino, que mostrou o valor que um repórter do Diário do Pará recebia: mil reais, que com os descontos, ficava em R$ 837. Ele participou da primeira rodada de negociações com a empresa. “As pessoas na direção do sindicato, os donos e representantes do Grupo RBA e principalmente nós da categoria de jornalistas não havíamos vivenciado as engrenagens de uma greve. Alguns já haviam feito cobertura jornalística, outros apoiado movimentos grevistas de outras categorias, mas ser protagonista era novidade para todos os lados envolvidos naquela crise. Pela primeira vez a maioria de nós participaria de algo assim, mas essa lição básica sabíamos: a nossa força estava na massa de grevistas. A contabilidade feita a partir do que já tínhamos e do que ainda poderíamos ter de adesões nos dava a certeza de que o jornal não deixaria de circular, mas a ferida seria grande”, comenta.

Às vésperas de deflagrar a greve, mais um diretor do grupo, que inclusive ainda faz parte do quadro, foi ao Facebook fazer mais um comentário infeliz entre tantos emitidos por diretoria e empregados que compravam a briga da patronal. Disse: “Meia dúzia de gatos pingados acha que pode mudar o mundo”. No primeiro dia de mobilização, o movimento obteve uma margem surpreendente de adesões e adotou “Os Saltimbancos” como hino: “Nós gatos já nascemos pobres/ porém já nascemos livres”, com direito a ciranda no meio da rua durante os atos públicos, momento que contou com estudantes do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Pará (UFPA), levados pelos professores para conversar com os grevistas durante a semana de paralisação. Assim surgia a “Revolução dos Gatos Pingados”.

O legado

“Não estamos pensando em demitir ninguém. Até porque, como é que vamos ficar sem funcionários? Não temos essa ideia de revanchismo, de raiva.” A frase é de um diretor do Diário do Pará em entrevista postada no blog “A Perereca da Vizinha”, da jornalista Ana Célia Pinheiro, no dia 24 de setembro de 2013, auge da greve.

“Enquanto me abraça forte, Seu Martins fecha os olhos marejados. Pede desculpas. Estamos na portaria da empresa onde trabalhei por seis anos. Parados no hall. E não posso entrar. A funcionária do RH, acaba de me dizer que hoje não vou subir as escadas. Devo assinar a papelada que ela organizou e ir embora, já que a empresa não precisa mais de mim. Faço isso. De pé, na recepção. Seu Martins, o porteiro, me abraça, aperta os olhos, pede desculpas. Como se fosse dele a decisão de bloquear minha entrada nesse 18 de novembro”. Este é o trecho do relato postado pela grevista Amanda Aguiar, do Diário do Pará, postado em 19 de novembro de 2013, dia seguinte à sua demissão do veículo.

Movimento também contou com a adesão de professores e estudantes do curso de comunicação da UFPA (Foto: Tarso Sarradf/arquivo)

A greve encerrou no dia 27 de setembro daquele ano, garantindo um aumento salarial de 30%, um dos maiores reajustes de todo o país. Para abril de 2014, o acordo foi aumento de mais 20%, com salário fechando em R$ 1.500, coletes salva vidas para as equipes de polícia, capas de chuva e galochas. Também foi combinada estabilidade de 45 dias para os grevistas. Exatamente ao final desses 45 dias, Amanda Aguiar, Felipe Melo (DOL), Cristiane Paiva e Adison Ferrera foram demitidos na porta do grupo. O desligamento na porta da empresa, uma tentativa de demonstrar superioridade sobre os trabalhadores, ainda durou por um tempo até os grevistas fazerem novo protesto denunciando a prática assediadora. Ao todos, 16 jornalistas que participaram do movimento foram demitidos.

O aumento para R$ 1.500 reais brutos combinados na greve aconteceu em 2014. Desde então, o primeiro aumento só veio acontecer em 2023, dez anos depois do movimento. Os repórteres do Diário do Pará receberam aumento para aproximadamente R$ 2 mil reais brutos, o que equivale a aproximadamente R$ 1.700 com os descontos. Essa conquista foi do Sinjor-PA, cuja diretoria atual é formada por trabalhadores que participaram e apoiaram a greve em 2013.

Para se ter uma noção de como o pagamento continua defasado, de acordo com o site Salário.com, a faixa salarial de um jornalista no Brasil em 2023 fica entre R$ 3 mil (salário médio da pesquisa) e o teto de R$ 8.764,22, sendo que R$ 3.778,72 é a média do piso salarial 2023 de acordos coletivos levando em conta profissionais em regime CLT de todo o Brasil.

Finalmente, nenhum dos grevistas se assustou diante da possibilidade de “queimar o nome no cenário local”. É preciso coragem para realizar uma greve e arriscar o próprio emprego, algo que vai além do ego e do revanchismo. Trata-se de obter condições justas, dignas da competência que todos sabiam ter. A demissão já era esperada, tendo em vista a maneira como o grupo retaliou os grevistas logo na noite do final da greve. Todos receberam ligações informando-os de mudanças na redação: repórteres tiveram seus turnos trocados de forma brusca, editores especializados passaram para temas completamente diferentes da sua expertise, nenhum grevista mais viu a assinatura nas suas matérias no jornal. Uma das grevistas fez a matéria que foi a manchete principal da capa no primeiro dia após o fim da greve e, ao questionar porque não teve a matéria assinada, foi informada que “apenas conteúdos importantes seriam assinados dali em diante”.

Ao todos, 16 jornalistas que participaram do movimento foram demitidos (Foto: Tarso Sarraf/arquivo)
 

Depois do desligamento dos quatro primeiros, mais doze jornalistas foram demitidos ao longo dos meses seguintes dos veículos do grupo RBA. Por mera coincidência, todos grevistas. Todos podem relatar ao menos uma vez em que foi dispensado de uma vaga de emprego nos anos posteriores por ter grevado. “Não fica bem para nós ter um empregado que já participou de uma greve”, um deles escutou. Ao mesmo tempo, todos obtiveram oportunidades em locais onde pedir por direitos básicos não é crime.

Hoje, Amanda Aguiar, Cristiane Paiva, Felipe Melo, Adison Ferrera, Daniele Brabo, Edmê Gomes, Yorranna Oliveira, Elias Santos, Thamires Figueiredo, Jones Santos, Fábio Relvas, Iaci Gomes, Thiago Gomes e Brunno Gustavo continuam, em sua maioria, trabalhando na sua área de formação. O fotógrafo Thiago Araújo também foi um dos demitidos, mas faleceu em 2016. As ações de danos morais que alguns deles abriram na justiça contra o grupo continuam correndo à espera de decisão.

Movimentou uniu jornalistas das mais diversas gerações, em Belém (Foto: Tarso Sarraf/arquivo)

“Parei parcialmente a vida pra lutar pra que outros que, como eu, encontrarão no Diário do Pará seu primeiro emprego, sejam mais valorizados do que sou neste momento. Pra que quem está lá, trabalhando há mais tempo por amor ou por pura necessidade, não sinta desgosto ao ver o contracheque no final do mês pensando em como irá sustentar a família com o salário de fome que recebemos hoje”, pontuou o grevista Tiago Júlio em carta escrita e lida para os colegas na véspera da greve. Sempre foi sobre respeito pelos trabalhadores. A greve do Diário do Pará e DOL completa dez anos em 2023, um movimento que fez história, incomodou e que todos os grevistas esperam que seja uma semente que nunca se perca. É como o coletivo repetia em entrevistas, cartas abertas e postagens: “Aos que virão.”