Lei estadual abriu espaço para atividade de ‘pesque e solte’; governo liberou quase 20 licenças para região do Baixo Rio Branco

Por Josué Ferreira

“Estão tomando o nosso rio. Ninguém tem mais onde pescar. Onde você encosta na beira do rio você é expulso. Se para numa ilha, te botam para viajar, se parar na boca de um lago, eles nos botam para fora, não pode ficar lá. Antigamente você tinha toda essa região para pescar, mas hoje o turismo está aumentando a cada ano, está tomando o espaço dos pescadores. Os pescadores vão ficando de lado, são esquecidos. Daqui a uns anos, acho que o pescador nem vai existir mais”, avalia o pescador Altair Silva, de Caracaraí.

A declaração do pescador é uma referência ao avanço da pesca esportiva na região do Médio e Baixo Rio Branco, em Roraima, um dos estados da Amazônia Brasileira. Nos últimos anos, pescadores artesanais de Caracaraí e Rorainópolis viram os trechos dos rios serem autorizados para que empresários desenvolvam a atividade turística. Com isso, o que antes garantia renda para o sustento das famílias ribeirinhas, está sob a mira da famosa frase “pesque e solte”.

Esse cenário de liberação de licenças para a pesca esportiva ganhou força com a eleição de Antonio Denarium (Progressistas) no ano de 2018, com a onda bolsonarista que se espalhou pelo Brasil e levou ao Executivo roraimense um aliado do agronegócio e de atividades comerciais degradantes, como o garimpo ilegal. Denarium se mostrou pró-pautas neoliberais, segundo ele, para impulsionar a economia e atrair cada vez mais empresários de todo o mundo.

Um ano depois de ser eleito para o primeiro mandato, Denarium enviou para a Assembleia Legislativa de Roraima (ALE-RR) um projeto de lei que proibia a pesca de tucunarés nos Rios Itapará, Xeriuini e Jufari, localizados no Baixo Rio Branco. Sob polêmica, a proposta se arrastou no parlamento estadual por dois anos, mas, por ter, até então, uma base de 18 aliados na Casa Legislativa, recebeu o aval dos deputados e conseguiu transformar a proposta na Lei nº 1.540/2021. A proibição tem validade de cinco anos a partir da sanção, que ocorreu em novembro de 2021. Isto é, a lei está em vigor até 2026.

Pescador Altair afirma que cresce número de empresas operando com pesca esportiva (Foto: Divulgação/Conexão Criativa)

No texto, porém, há uma brecha: a pesca esportiva ficou autorizada nestes rios, desde que cumpridos os requisitos para tal, atraindo, portanto, investimentos de empresários brasileiros e turistas de outros países. E, apesar de permitir que pescadores amadores, que têm a pesca como meio de sobrevivência, possam exercer a profissão nos rios, o governo limitou a sete tucunarés por barco, sendo um número extremamente inferior para quem depende da venda do peixe. Mas os relatos de pescadores dão conta de que os próprios empresários ditam as regras nos rios e os proíbem de entrar para pescar.

“Empresários do Amazonas vão se encaixando em Roraima. Tem rio que já tem duas ou três empresas trabalhando. Só tem uma empresa que trabalha sozinha no rio, porque tem apoio do governo”, complementou Altair.

Com o caminho jurídico criado, isto é, a lei estadual aprovada pelo parlamento, a Fundação Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Femarh), responsável por emitir as licenças para a atividade de barco-hotel e pesca esportiva, emitiu pelo menos 17 documentos para a pesca esportiva. Todos eles com autorização para operar na região do Baixo Rio Branco, nos municípios de Caracaraí e Rorainópolis. Além disso, outros cinco processos, abertos entre 2021 e 2023, aguardam parecer da instituição.

   A Femarh, por meio de nota enviada ao Correio do Lavrado, disse ainda que esses números são referentes apenas aos processos digitais e que “os trâmites mais antigos são processos físicos, que exigem pesquisa em documentos arquivados”. Ou seja, esse número pode ser maior.

 Procurado, novamente, para responder aos questionamentos da reportagem, o governo não enviou resposta até a publicação desta matéria. Questionadas via e-mail, duas empresas não deram retorno, enquanto outra não teve os canais de comunicação localizados pela reportagem.

Pouco rio, muito peixe: a pesca artesanal ameaçada

Pescador Antônio detalha como pesca esportiva atrapalha os pescadores (Foto: Divulgação/Conexão Criativa)

  O avanço da pesca esportiva afeta uma das principais camadas da região ribeirinha: a subsistência das famílias. Com o número crescente de empresários – cinco vezes mais nos últimos cinco anos -, quem depende de pegar o peixe para vender vai ficando sem espaço nos rios e precisando recorrer a uma espécie de rota de descobrimento de outras regiões onde seja possível encontrar o alimento em grande quantidade. Esses relatos são unanimidade durante as cinco entrevistas realizadas com os pescadores e pescadoras.

  A grande quantidade é uma alternativa encontrada para conseguir driblar o baixo valor do quilo do peixe repassado para os chamados “atravessadores” – pessoas que compram o pescado e vendem principalmente para empresários da capital de Roraima, a cidade de Boa Vista. Durante o severo período de seca que afetou o Estado, entre o segundo semestre de 2023 e o primeiro trimestre de 2024, algumas espécies foram vendidas por R$ 0,50 o quilo. O valor não passou de R$ 3, causando graves prejuízos aos pescadores que passam até 12 dias em um barco no rio para pescar o peixe.

 “Estava com um amigo pescando e encontramos um cardume. Conseguimos pescar pouco mais de 700 kg de peixe e ficamos contentes porque havíamos saído de Caracaraí e o quilo estava entre R$ 7 e R$ 10. Então esperávamos fazer uns R$ 8 mil. Mas quando chegamos, o quilo estava a R$ 3. Deu mal para pagar a despesa da viagem e dividir entre nós dois. Ficamos muito desanimados. É muito triste passar por isso. Um pescador ficou tão chateado com o preço que decidiu doar todo o peixe a vender por esse valor”, relatou um pescador em situação de anonimato, por medo de que os atravessadores deixem de comprar os peixes dele.

  Altair também passou por situação semelhante. Dias no rio lhe renderam uma tonelada e meia de peixe, da qual esperava conseguir R$ 9 mil. Entretanto, a realidade foi outra. Os atravessadores compraram a carga por R$ 2,50 o quilo, resultado em R$ 3,7 mil. O resultado, além da tristeza, foi não ter condições de descer novamente para uma nova pescaria, porque a despesa da primeira ida sequer foi paga.

 “Teve pescador que vendeu o mesmo peixe [aracu] por R$ 2. Não existe tabela de preço. O preço é o que eles colocam. Se eles dizem que o quilo é R$ 3, não tem para onde correr”, lamentou.

Pescadora Maria Madalena, conhecida como Maroca, fala das mudanças climáticas (Foto: Divulgação/Conexão Criativa)

A pescadora Maria Madalena, que está na atividade há mais de 30 anos, acrescenta que o trabalho não é valorizado por quem compra o pescado para revender. Enquanto na beira do rio o quilo sai por R$ 1, o mesmo peixe chega a ser vendido por até R$ 19 o quilo na capital Boa Vista. Há, dessa forma, um enorme desequilíbrio entre quem pesca e quem compra. O lucro fica quase que em sua totalidade para aqueles que se aproveitam do suor dos pescadores para enriquecer.

“É muito sacrificoso, no último ano foi pior por causa da seca, e os atravessadores que compram nosso peixe não valorizam. A gente fica muito insatisfeita, porque se a minha dedicação fosse só no peixe, ia viver devendo, porque não tira nem o dinheiro da despesa. Eles falam que a despesa é grande, que gastam óleo diesel. E a nossa? A gente gasta gasolina, diesel, gelo, tem a nossa alimentação, e não está mais dando para o pescador viver da pesca. Tem pescador passando fome, porque faz uma despesa para três dias, pega 100 kg de peixe, gasta R$ 400 e não consegue vender para tirar a despesa. A cada ano, a situação da pesca fica ainda mais precária”, relatou Maria Madalena, mais conhecida na Vila Vista Alegre como Maroca.

Ela recorda que a situação ficou ainda mais grave no segundo semestre de 2023, quando uma seca severa afetou Roraima, causando a segunda maior seca da história do Estado, quando o rio Branco, o principal do Estado, ficou com 39 centímetros negativos, segundo dados da Companhia de Águas e Esgotos de Roraima (Caer). O maior causador disso foi o fenômeno El Niño, que vem se intensificando por causa das mudanças climáticas.

Rio Branco, principal de Roraima, tomado por fumaça em meio à intensa seca (Foto: Divulgação/Conexão Criativa)

Uma análise da World Weather Attribution (WWA) mostrou que a seca na Amazônia, no ano de 2023, foi 30 vezes mais provável por causa das mudanças no clima. Em fevereiro de 2024, outro exemplo de mudanças climáticas: foram registrados 1,6 mil focos de calor em Roraima, um recorde para o Estado, conforme o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Com isso, os reflexos não são sentidos apenas nos grandes centros urbanos, mas também pelas comunidades ribeirinhas, que dependem do rio para sobreviver.

“Desde quando vim morar em Roraima, nunca vi uma seca desse jeito. Quebrava a palheta do motor, encalhava o barco, quebrava a rabeta do motor, e de canoa pequena. Imagina um barco grande. Uma balsa cheia de calcário ficou encalhada na praia por uns quatro meses”, revelou Maroca, ao acrescentar que, junto com a seca, a fumaça causada pelas queimadas no Estado agravou ainda mais a atividade pesqueira, “prejudicando a visão e afetando as vias respiratórias”.

Frente ao caos climático, potencializado pela atividade de pesca esportiva, a saída dos pescadores tem sido buscar mecanismos para pegar mais peixe e, consequentemente, mais dinheiro. Com isso, revela-se outro contexto: pouco rio, por causa do domínio da pesca esportiva, e a necessidade de mais peixe, devido ao baixo preço do pescado. Por outro lado, o pescador Antônio Lima afirma que as interferências das empresas de pesca esportiva podem ser observadas de outras formas.

“Quando estamos pescando, essas lanchas [da pesca esportiva] passam pela gente fazendo barulho e espantando o peixe. Atrapalha bastante, porque o peixe fica arisco e temos que começar a pescaria de novo. Às vezes, estamos indo no barco carregado e as lanchas passam e só faltam alagar a embarcação da gente. Ano passado quase fui para o fundo, porque eles não sabem reduzir para passar pela gente, mais afastados”, detalhou.

Pesquisador da Embrapa, Sandro Loris, fez monitoramento pesqueiro no Baixo Rio Branco (Foto: Divulgação/Conexão Criativa)

 Mais dois fatores são colocados na balança pelo pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Sandro Loris: a criação de novas reservas ambientais e a proibição de pescar nos lagos da região do Baixo Rio Branco. Com isso, os pescadores se viram obrigados a buscar locais que lhe rendessem peixe suficiente para vender, o que ficou ainda mais restrito devido à liberação de licenças ambientais para a pesca esportiva. Ainda assim, conforme Loris, durante o monitoramento pesqueiro da região, foram encontrados resquícios de pesca nos lagos.

  “Os pescadores comerciais, que são a grande maioria no Estado, tiveram que praticar a pescaria no rio, que é o que está liberado para eles trabalharem. Os lagos próximos a Caracaraí, mais ou menos 180 quilômetros depois da cidade, estão dentro de duas reservas, Niquiá e Parque Nacional do Viruá. Eles não podem pescar nestes lagos. E mais abaixo já começam as comunidades, que também usam o mesmo recurso para trabalhar a pesca comercial. Então existe conflito de uso de recursos e de área, que antes era usada e eles tiveram que parar de usar. Isso dificulta e aumenta o custo de produção, porque tem que ir mais longe pescar, dependendo da época do ano”, disse.

As permissões de uma lei

Nos últimos cinco anos, 17 licenças foram emitidas pela Femarh para operarem em Roraima (Foto: Divulgação/Conexçao Criativa)

Uma empresa se aproveitou da lei estadual para se instalar no rio Xeriuini. O pesquisador Sandro Loris desenvolveu o Projeto PROPESCA, um monitoramento pesqueiro na Região Sul de Roraima, com recurso do Fundo Amazônia, contemplando as cidades de Caracaraí e Rorainópolis, e afirma que alguns empresários alegavam que a pesca do tucunaré estava proibida, o que era mentira.

Loris, que também é professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Agroecologia da Universidade Estadual de Roraima (UERR), disse que se tratava de uma estratégia para acessar as comunidades. Ele explica que, assim como qualquer atividade feita pelo homem, se a pesca esportiva for feita de forma errada, pode gerar um impacto não apenas para o meio ambiente, mas para as comunidades ribeirinhas. Loris acrescentou que, durante o monitoramento, foram relatados diversos conflitos de moradores com os empresários.

“Era uma estratégia para entrar na comunidade e oferecer outra possibilidade de renda. Sem uma gestão e sem um ordenamento pesqueiro, começam a aparecer os conflitos de uso do recurso, e isso é o que vem acontecendo. Não teve e não tem uma conversa com todos os elos da cadeia para tentar definir como vai ser usado [o rio]. Estão apenas se instalando em diversos locais. Saímos de quatro para 21 empresas, praticamente do dia para a noite. E a lei diz que para ter a liberação tem que ter um estudo de capacidade de suporte, e, das quatro, só uma tinha o estudo de capacidade, as outras três não, além das outras empresas novas que estão chegando nos rios”, detalhou o pesquisador.

Poucos pescadores vivem da pesca em algumas comunidades ribeirinhas (Foto: Conexão Criativa)

 

O avanço da pesca esportiva das comunidades ribeirinhas no coração da Amazônia para localidades mais próximas dos centros urbanos revela que: onde a pesca esportiva já se consolidou, as comunidades vivem praticamente dessa atividade, como é o caso de Canauini, Terra Preta e Lago Grande, todas no Baixo Rio Branco. Nessas regiões, os moradores vivenciaram situação semelhante a agora narrada pelos pescadores de Caracaraí, de empresas se instalando para explorar o rio por meio da pesca esportiva. Quem relata esse panorama é Valdenir dos Santos e Silva, de 38 anos, que vive em Canauini.

 “O turismo nas comunidades se normalizou. A empresa se instalou contra a vontade das comunidades, e as pessoas foram trabalhar lá porque não teve jeito. Hoje, graças a Deus, está normalizado, não está 100%, mas dá para trabalhar. Nos adequamos. A questão da pesca está praticamente erradicada, não tem família que vive da pesca predatória, vive da pesca esportiva. Outros, que não trabalham com a pesca esportiva, trabalham para instituições públicas. Eu vivi os dois lados: pesca e turismo. O mais provável, vejo eu, é que todo mundo trabalhe com turismo”, avaliou.

 Valdenir afirma que a falta de políticas públicas do governo faz com que os moradores sejam obrigados a se adaptar a uma nova realidade, como foi o caso da pesca esportiva. Devido à ausência de fomento à geração de emprego e renda na região ou à falta de suporte para a agricultura e o extrativismo nas comunidades, os ribeirinhos são empurrados a buscar emprego nas empresas.

“Na época, a grande maioria dos moradores não queria a outra empresa, porque já tinha uma empresa que trabalhava há anos, mas outras pessoas queriam, e acabou que todo mundo se conhecia e vimos que não adiantava querer brigar, o governo não ia tirar [a licença], porque a empresa que estava entrando [no rio] era com consentimento do governo, e por mais que a gente lutasse não ia chegar a nenhum lugar. E sabemos da carência de trabalho, as comunidades são carentes do poder público, não tem política pública de nada, para extrair nada, no meio rural também não tem. Então ou você pesca para vender ou trabalha no turismo”, resume.

O presidente da Vila Terra Preta, Cleuder Miranda, comentou que não há conflitos entre a pesca esportiva e os pescadores artesanais. “Ninguém vê isso, tanto é que temos três empresas trabalhando aqui dentro. Não vemos problemas. Tem um acordo de pesca, o que não pode é o morador ficar pescando na frente de cliente, porque tem turismo que funciona na área da comunidade, mas tudo tranquilo, não tem problema. Muito pelo contrário, as pessoas hoje dependem do turismo. Poucas pessoas extraem castanha. A agricultura familiar, como farinha, só para o consumo. Terra Preta e Lago Grande dependem do turismo”, complementou.

Pescadores buscam cada vez mais espaço nos rios (Foto: Conexão Criativa)

No entanto, um fato incontestável é que tanto os pescadores comerciais quanto os esportivos buscam um peixe semelhante: o tucunaré. E precisa ser grande. Para o pescador que vive disso, quanto maior o peixe, mais dinheiro; para o esportista, é o chamado troféu, e quanto maior, melhor, mais satisfação existe em capturá-lo. Os peixes menores, muitas vezes, têm o anzol retirado de qualquer maneira, causando ferimentos ao animal e, em muitos casos, a morte dele, porque não consegue se alimentar.

O pesquisador Sandro Loris explica que o tucunaré tem entre sete e catorze espécies que desempenham papel importante na cadeia alimentar. O monitoramento feito por meio do projeto da Embrapa na região do Baixo Rio Branco revelou que ele é o terceiro peixe mais capturado pelos pescadores, ficando atrás apenas do aracu e do pacu. Para chegar a essa conclusão, foram monitoradas mais de 1,1 mil pescarias, que resultaram em 208 toneladas de peixes e movimentaram mais de R$ 1 milhão.

 “Toda espécie tem uma função biológica, e o tucunaré é peixe de topo de cadeia alimentar, é carnívoro, ele fica regulando espécies que chamamos de forrageiras, nessa relação presa-predador”, resumiu. Por isso, segundo o pesquisador, é preciso encontrar um equilíbrio entre todos que utilizam esse mesmo recurso. “[Estão faltando] políticas públicas para trabalhar com os diversos tipos de pescadores, o que não é fácil, porque utilizam o mesmo recurso pesqueiro e ambiental. Em alguns casos no Baixo Rio Branco, a comunidade não pôde mais pescar para comercializar, só pesca para a subsistência. É uma mudança de hábito muito grande. Falta muita coisa a ser definida, conversada, para dar segurança aos pescadores de todos os lados. Existe espaço para todos, mas precisa de uma gestão e um ordenamento da pesca, não dá para beneficiar uma atividade em detrimento de outra”, avaliou.

Crimes ambientais

Embarcações foram apreendidas no segundo semestre de 2023 (Foto: Reprodução/TJRR)

 O histórico de alguns dos empresários que hoje operam na região do Baixo Rio Branco é bastante conturbado. A reportagem localizou documentos no Poder Judiciário que mostram casos de crimes ambientais no Baixo Rio Branco, suposto favorecimento de empresas e perseguição a outras, e até barcos de pesca esportiva operando sem licenciamento ambiental, procedimento obrigatório para quem deseja atuar no ramo. Outra linha observada é a esfera do trabalho: dezenas de ações movidas contra algumas empresas por violações da legislação trabalhista tramitam no Tribunal Regional do Trabalho da 11ª Região (TRT-11). Mesmo com todos esses indícios, as empresas receberam autorização do governo para seguir com a pesca esportiva.

 Um documento da Companhia Independente de Policiamento Ambiental (Cipa),  obtido pelo Correio do Lavrado, revela que, em setembro do ano passado, uma empresa foi flagrada operando sem licenciamento na Região Maú. Duas embarcações de alto padrão e oito botes estavam atracados na Ilha Jacaretinga, esperando por 14 turistas que já haviam se deslocado de Caracaraí. Para se ter dimensão das embarcações, uma delas possuía nove suítes, onze banheiros e dois bares. A Cipa escreve no relatório que o gerente da empresa “não apresentou qualquer documento de licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes para exercer atividade ou serviço naquela localidade”. Por essa razão, foi enquadrada no crime de poluição, com base no Art. 60 da Lei nº 9.605/1998.

  Para a autoridade de polícia ambiental, a situação era ainda mais grave, pois no local onde os barcos estavam se trata de área onde está sendo executado o projeto “Quelônios da Amazônia”, que busca preservar as espécies na região. A Cipa aplicou multa de R$ 5 mil, apreendeu todas as embarcações da empresa e confiscou 800 litros de combustível, que foram usados em operações contra crimes ambientais. O Ministério Público do Estado de Roraima (MPRR) ofereceu um acordo de R$ 10 mil para os envolvidos e a empresa, para evitar que o processo siga. Uma audiência foi marcada para definir se o empresário vai aceitar a proposta. A empresa não respondeu à reportagem.

  Um dos casos mais emblemáticos de liberação de licença para pesca esportiva em Roraima foi para uma empresa do Paraná, que conseguiu, a princípio, uma autorização de 10 anos para operar na região do Baixo Rio Branco. Foi criada em 2020 e tem capital social de R$ 20 mil, de acordo com a Receita Federal. Um ano depois, em 2021, o governador Antonio Denarium se reuniu com o empresário para anunciar a licença. Entretanto, a repercussão foi negativa, e o documento cancelado pela própria Femarh depois de o caso parar na Justiça Estadual, levado pela Associação dos Moradores da Comunidade de Xeriuini. Segundo a Fundação, houve vícios administrativos, sem especificar quais.

   Àquela data, a associação já mencionava na peça judicial que o governador estava promovendo um “verdadeiro monopólio de atividade empresarial, em detrimento da população residente na região conhecida como Baixo Rio Branco”. A acusação era feita porque a empresa de turismo criada pelos ribeirinhos, que operava há mais de 20 anos na região, teve a licença não renovada pela Femarh, o que foi interpretado pela associação como um ato de perseguição aos moradores da comunidade. Neste mesmo documento, durante a disputa pelos rios na região do Baixo Rio Branco, os ribeirinhos chegaram a ser ameaçados por policiais levados pelo empresário. A informação consta em procedimento aberto pelo Ministério Público do Estado do Amazonas (MPAM), que já investigava a mesma empresa por supostos crimes ambientais, como a derrubada de castanheiras para a construção de hotel de selva. A empresa também não respondeu ao pedido de posicionamento.

 Ações na Justiça do Trabalho

A reportagem localizou também processos na esfera trabalhista contra parte das empresas de pesca esportiva que estão autorizadas a operar em Roraima. Num dos casos, o funcionário trabalhou durante três anos, nunca teve a carteira assinada, nunca tirou férias e prestava serviços de segunda a sexta-feira, das 8h às 22h, com uma hora de intervalo para o almoço. Ao ser demitido, buscou a Justiça do Trabalho do Amazonas para reaver os direitos que lhe foram negados. Ele conseguiu um acordo, já homologado pela Justiça, e vai receber R$ 70 mil.

 Valdenir dos Santos e Silva, o morador mencionado anteriormente, abordou a situação trabalhista dos moradores que atuam nas empresas de turismo. Muitos são contratados para ser guias turísticos, cozinheiros e garçons, todavia ganham salários baixos para exercerem as funções. Além disso, ele acrescenta que há uma cobrança para que os moradores busquem cursos de qualificação, já que o público atendido, às vezes, é internacional.

“As empresas precisam investir mais nas comunidades, na mão de obra. A questão do salário, a gente acha que tem que melhorar bastante. Mas aos poucos acredito que vai melhorando, você vai dialogando com os empresários, existem as associações também que estão para auxiliar as comunidades. Então aos poucos vamos nos adequando ao trabalho, mas as empresas precisam melhorar muito, porque cobram e nós estamos em um lugar reservado [isolado] e não tem como estar procurando [cursos de qualificação]”, ponderou.

Os estudos desenvolvidos entre 2019 e 2021 pela Embrapa, a partir de recursos do Fundo Amazônia, trazem contribuições para explicar esse cenário trabalhista. A Embrapa aguarda nova liberação de verba para dar continuidade aos trabalhos. Contudo, neste período, a instituição observou que os moradores são, de fato, cooptados para trabalhar nas embarcações de pesca esportiva, seja como piloto, cozinheiro, gerente, e outras funções, como trazido por Valdenir. O professor Sandro Loris explica que para receberem o chamado Seguro Defeso, no valor de R$ 1.412,00 – salário-mínimo no Brasil em 2024 – os pescadores devem viver exclusivamente da pesca. Logo, as outras funções remuneradas podem representar risco à perda do benefício.

  “A lei da pesca diz que o segurado que recebe essa indenização precisará viver estritamente da pesca. E as atividades que eles desenvolvem durante a pesca esportiva, para a qual são cooptados porque sabem onde está o peixe, descaracterizam como ‘viver da pesca’. Então quando cruzam essas informações ao assinar um contrato, e às vezes eles nem assinam para não cruzar, eles acabam recebendo menos do que o mercado pagaria para poder ter durante o período de defeso o benefício para o sustento. Ganha bem? Pode ganhar, tem gorjeta, por exemplo, mas ele não tem a segurança trabalhista, porque se cruzar as informações ele vai perder o direito dele como pescador”, fala o pesquisador da Embrapa.

Valdenir explicou que as empresas trabalham por temporada, que começam em outubro e vão até março do ano seguinte. Segundo o morador, os empresários pagam apenas o que foi trabalhado pelos moradores cooptados para o turismo, “não fazem contrato, não assinam carteira”. Ela acredita que esse é um ponto que deve ser discutido com os empresários, para que, mesmo após a temporada, haja uma ajuda de custo para as famílias que atuam na pesca esportiva.

“Acho que esse é um ponto que [precisa ser visto], porque termina a temporada e não ganhamos mais nada. Eles deveriam fazer um contrato, para terminar a temporada e pagar o tanto que é para ser pago e eu acho que é uma coisa que eles deveriam fazer. Se eles não assinarem a carteira, mas [pelo menos] fazer um contrato com o pessoal da comunidade. Depois da temporada, a grande maioria das pessoas vai para o extrativismo do açaí, que é a segunda maior renda depois do turismo. O pessoal depende disso. Por isso, eu falo que tem que ter uma política pública para aumentar esse extrativismo para a melhoria das comunidades e não depender só do turismo. Outros recebem o Seguro-Defeso da Carteira dos Pescadores, que eles têm direito a receber”, reforçou.

Essas situações trabalhistas ganham cada vez mais espaço na Justiça do Trabalho. Outro processo localizado pela reportagem exemplifica as declarações de Valdenir. Na ação, o homem afirmou que trabalhava como cozinheiro e exercia suas funções por até 18 horas por dia. Ao ser demitido, não recebeu multa de 40% sobre o recolhimento do FGTS e nem as horas extras trabalhadas. Por essa razão, pediu pagamento de quase R$ 150 mil por todos os direitos que, segundo ele, foram violados.

 “[Ele] ficava à disposição praticamente 24h, dormia no local, com uma extensa jornada de segunda a domingo, ficando privado inclusive de ter acesso com seus familiares em razão não de ter concessão para folgas. Além do mais, não bastasse a extensa jornada laboral, supressão das horas de intervalo, sofria constante assédio moral no ambiente do trabalho por seu superior […] São de fácil percepção os danos sofridos, sobrecarga de trabalho, assédio moral, submissão a executar atividades, ocasionando verdadeiro tormento na vida [dele]”, argumentou o escritório de advocacia responsável pelo trabalhador.

Magistrado rejeitou pedidos de ex-funcionário (Foto: Reprodução/TJRR)

Apesar de todo o contexto levantado, o juiz responsável rejeitou todos os pedidos feitos pelo trabalhador, sobre a justificativa de que não ficaram comprovadas as alegações e que o trabalho em meio à floresta é, sim, mais intenso.

“[…] trata-se de um hotel de selva, situado em local remoto e de difícil acesso, parecendo lógico concluir que as peculiaridades do trabalho realizado ali, difere daqueles existentes para os trabalhadores em meio urbano, no qual o labor mostra-se um tanto quanto  intenso. Portanto, não lhe assiste direito ao recebimento de horas extras, de modo que não há outro caminho a ser adotado, senão o de indeferir os pleitos de horas extras a 50% e 100%, intervalo intrajornada e adicional noturno, bem como as integrações e reflexos nos demais consectários, ante a máxima do Direito em que o acessório segue a sorte do principal”, escreve o magistrado.

Clamor dos pescadores

     Se é preciso chamar o Governo de Roraima para uma conversa com todos os pescadores, o clamor não falta da parte de quem depende do peixe para sobreviver. Altair acredita que se não houver uma intervenção urgente, a situação de quem vive da pesca ficará ainda mais difícil e as famílias vão sofrer impactos financeiros ainda mais severos, seja pelo avanço da pesca esportiva ou pelo baixo valor do quilo do peixe.

    “As autoridades não olham para a classe pesqueira. Em Caracaraí, não temos ninguém que olhe pela gente. Nem deputado, vereador. Para eles, somos uma classe esquecida. Não dá nem mais para falar que ‘vai melhorar’, ‘vai entrar outro prefeito’, ‘vai entrar o deputado’… Isso aí já esquecemos. Só promessa. Tinha que entrar um representante que representasse a classe pesqueira, porque seria bom para nós. Ou um prefeito, um deputado mesmo que olhasse para nosso pedaço de rio que estão tomando tudo”, lamentou Altair.

 Para Antônio, que pesca há quase 20 anos, a atividade tem um significado especial e o governo deveria agir para criar um tabelamento de preço para a região para evitar os atravessadores de comprarem pelo preço que desejarem.

“Era para ter um tabelamento de preço para ficar somente naquele valor, um preço fixo, aí sim melhoraria bastante para o pescador. Se tivesse um frigorífico… Principalmente o governo que promete mundos e fundos e nunca cumpre, em relação a um frigorífico para cá para ficar armazenando o peixe dos pescadores”, falou, ao acrescentar que se o governo ampliar as áreas de conservação, não haverá lugar para pescar, já que os rios estão sendo dominados pela pesca esportiva.

Pescadores pedem medidas frente ao avanço da pesca esportiva (Foto: Divulgação/Conexão

Dona Maroca, ao pedir mais atenção do governo, mencionou ainda os impactos do garimpo ilegal na atividade. Muitos atravessadores deixaram de comprar peixe por causa dos estudos que indicaram a presença de mercúrio nos animais. Além disso, se antes era mais fácil pegar o peixe no rio, com o passar do tempo ela também percebeu que a quantidade de pescados diminuiu. Por isso, discutir políticas públicas para os pescadores se tornou uma pauta urgente e necessária.

“Precisamos de um governo que olhe para o pescador, que procure e veja as nossas necessidades, que a associação fizesse um compromisso com a gente, que pegasse nosso peixe e levasse para Boa Vista [por um preço melhor], mas não temos nenhum representante com a gente. Eles só vêm no tempo da política. Aparecem muitos dizendo que vão fazer uma fábrica de gelo e não tem nenhuma. Como somos massacrados!”, resumiu.

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Essa história foi produzida com o apoio da Earth Journalism Network. A reportagem é fruto de uma parceria entre o Correio do Lavrado e o Carta Amazônia

Edição: Vanessa Vieira