Projeto aprovado em primeiro votação na Assembleia Legislativa do estado vai na contramão da legislação ambiental vigente e propõe que propriedades rurais médias ou pequenas apliquem agrotóxicos sem se preocupar com uma distância mínima de áreas habitadas

Um projeto de lei (PL) que tramita na Assembleia Legislativa do Mato Grosso pode ter graves consequências para a saúde pública e o meio ambiente no estado.  A proposta, apresentada pelo deputado estadual Gilberto Cattani, do Partido Liberal, e aprovada em primeira votação, flexibiliza as regras para o uso de agrotóxicos no estado, permitindo que sejam aplicados próximos a áreas habitadas e fontes de água, o que pode levar à contaminação do solo, da água e dos alimentos.

Atualmente, o Decreto nº 2.283/2009, que está em vigência, estabelece que o uso de agrotóxicos na agricultura só pode ocorrer a uma distância mínima de  300 metros de povoações, cidades, vilas, bairros, de mananciais de captação de água para abastecimento de população, de 150 metros de mananciais de água, moradias isoladas e agrupamentos de animais, e de 200 metros de nascentes, ainda que intermitentes.

O PL 1833/2023 vai na contramão da legislação ambiental vigente e propõe que propriedades rurais médias ou pequenas apliquem agrotóxicos sem se preocupar com uma distância mínima de áreas habitadas. No caso de grandes propriedades, com mais de quinze módulos rurais, a proposta prevê o uso de agrotóxicos a uma distância de 25 metros. 

Na proposta, o deputado Gilberto Cattani alega que a distância mínima de 300 metros traz prejuízos “à produção agrícola, à população e à economia, pelo alastramento descontrolado das pragas agrícolas”.

A Comissão de Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Recursos Minerais da Assembleia Legislativa, que analisa projetos e debate assuntos relacionados à área ambiental, foi favorável ao projeto e no parecer alegou que o PL “tem potencial para reduzir os prejuízos econômicos decorrentes de restrições excessivas, sem comprometer a segurança ambiental e humana”. 

O médico, pesquisador e professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Wanderlei Pignati, explica, porém, que os efeitos são contrários a isso e que a proposta é absurda, pois vai aumentar a exposição a venenos e ampliar a probabilidade da população ter doenças. 

“Quanto mais perto, maior é a probabilidade de você ter intoxicação aguda, malformações, câncer. A população que mora do lado, crianças e adultos, os rios, tudo vai ser muito afetado e contaminado”, afirma. 

Wanderlei Pignati é responsável por um estudo que analisou as condições de saúde de pessoas que moravam em distâncias inferiores a um quilômetro das áreas de lavouras em Mato Grosso. Por meio da pesquisa, realizada pelo Núcleo de Estudos em Ambiente, Saúde,Trabalho e Educação (Neast), do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da universidade, foi demonstrado que a proximidade de áreas agrícolas é um fator de risco significativo.

“A gente fez o levantamento da população e quanto mais perto da lavoura, mais doenças as pessoas tinham. Imagine se você diminuir isso para 25 metros ou para zero. É uma problemática muito grande e parece que o agronegócio não se importa com essa questão, se vai aumentar doenças, contaminar a água. Parece que eles só querem o lucro”, disse. 

“Eles têm que tomar consciência e reprovar esse projeto de lei. Não existe distância mínima ideal para o uso de agrotóxicos, pois alguns alcançam até quilômetros de onde foram aplicados. O ideal é reduzir o uso de agrotóxicos, aumentar a produção agroecológica e proibir o uso de agrotóxicos que já são proibidos na União Europeia”, acrescentou o professor. 

O deputado estadual Lúdio Cabral, do Partido dos Trabalhadores, apresentou um substitutivo ao PL para tornar lei a proibição hoje regulamentada pelo Decreto 2.283/2009. O substitutivo do parlamentar aguarda deliberação da Comissão de Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Recursos Minerais da Assembleia Legislativa. Porém, pelo regimento da Casa de Leis, a pauta deve aguardar cinco sessões para que seja colocada em apreciação novamente. O fim do prazo aconteceu em 9 de outubro e a proposta de Gilberto Cattani pode retornar à ALMT para segunda votação a qualquer momento. 

Povos indígenas e agrotóxicos 

Um estudo realizado em Mato Grosso, com foco em territórios indígenas, revelou a grave ameaça que o uso intensivo de agrotóxicos representa para a saúde dessas populações.

Com o título: “Territórios indígenas e determinação socioambiental da saúde: discutindo exposições por agrotóxicos”, a pesquisa feita por professores do curso de Saúde Coletiva da UFMT demonstrou que a proximidade de lavouras agrícolas, especialmente as de milho e algodão, expõe os indígenas a vários problemas de saúde, como irritações na pele e nos olhos, dores de cabeça, náuseas, distúrbios hormonais, malformações congênitas, abortos espontâneos, mutações genéticas, câncer, problemas respiratórios e distúrbios mentais, incluindo depressão e suicídios.

O estudo ainda mostrou que as pessoas com residência próxima a lavouras agrícolas de milho e algodão tiveram quase duas vezes mais intoxicações agudas comparadas com as que residiam em outros locais. 

Agrotóxicos proibidos

Outra pesquisa realizada pelo Neast/ISC/UFMT, em parceria com a Operação Amazônia Nativa (OPAN), sobre o impacto às aldeias pelo uso de agrotóxicos em lavouras que ficam no entorno de territórios indígenas, encontrou o carbofurano, proibido no Brasil desde 2017 e há mais de 50 anos na Europa e em estados americanos. Ele pode causar risco de morte após ingestão ou inalação, danos severos aos sistemas neurológico, respiratório e endócrino, malformação fetal em humanos, morte de animais silvestres e grande persistência ambiental.

Também foi encontrada atrazina, um herbicida do grupo químico triazina que tem função dessecante, proibido na União Europeia desde 2004, e o carbendazim, fungicida altamente tóxico que teve a comercialização suspensa no Brasil em 2022, após processo de reavaliação. 

Preocupação com aprovação do PL 

A presidente da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), Eliane Xunakalo, mostra preocupação com a proposta e avalia que o PL pode afetar ainda mais os povos originários. “Geralmente os nossos rios não nascem nos territórios. A gente não tem uma fiscalização adequada e o veneno pode ir para os nossos rios, matar peixes e prejudicar a nossa saúde”, avalia, apontando uma preocupação especial em relação aos povos indígenas. “Tememos que aumente o número de doenças e de casos de contaminação e nós seremos os primeiros a serem atingidos com esse veneno todo.

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Com informações da Operação Amazônia Nativa (OPAN)

Foto: Acervo/ Agência Brasil