Por Pedro Paz

O Ministério Público Federal (MPF) recomendou em abril deste ano, à Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, que instaurasse procedimento administrativo e declarasse emergência em saúde pública de importância nacional, devido à contaminação por mercúrio na bacia do rio Tapajós, oeste do Pará, especialmente em relação ao povo indígena Munduruku.

Mas, um ano antes, representantes de instituições públicas e de organizações da sociedade civil ligadas à fiscalização, pesquisa e incentivo a políticas públicas na área da saúde e à defesa de direitos socioambientais já faziam o alerta e lançaram, precisamente no dia 20 de maio do ano passado, fórum de discussão e enfrentamento da contaminação mercurial na bacia do rio Tapajós (PA) e adjacentes.

O professor e pesquisador do Departamento de Sistemática e Ecologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Leandro Giacomin destaca que a contaminação por mercúrio tem o potencial de gerar uma série de impactos na saúde das populações que consomem recursos pesqueiros in natura, assim como geram uma série de impactos na biota, conjunto de organismos que habita ou habitou uma área específica do planeta Terra.

Rio Tapajós, na região oeste do Pará (Foto: Leandro Giacomin)

“O mercúrio é um metal pesado que se acumula à medida que mudamos de níveis tróficos na cadeia alimentar, gerando impactos mais marcantes no topo da cadeia. Pode gerar malformações em bebês, abortos espontâneos e uma série de alterações na saúde dos adultos”, indica o cientista.

Conforme o professor da UFPB, a inibição da contaminação precisa de medidas por parte do poder público, associada à fiscalização da atividade garimpeira e proibição e controle de venda de mercúrio.

“Para comunidades que habitam regiões cuja água tem teores altos de mercúrio em função de atividade de garimpo recente, é necessário que estudos aprofundados sejam feitos e que a população tenha fontes de água e alimentos alternativos fornecidos temporariamente, até que haja uma compreensão sistêmica dos níveis de contaminação e origem do contaminante”, sugere o pesquisador.

Além disso, Leandro Giacomin considera que é essencial que o governo atual seja taxativo nesse sentido, de forma que praticantes de garimpo ilegal entendam que a manutenção de suas atividades será fiscalizada e punida de forma exemplar. “Sem isso, infelizmente, cenários de contaminação só se agravarão”, ressalta.

Comprometido com a causa ambiental, Leandro Giacomin expõe que, infelizmente, órgãos de fiscalização responsáveis por conter iniciativas de desmatamento, como o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], foram sucateados nos últimos anos. Esse cenário vem sendo aos poucos revertido, desde o começo de 2023, sendo que contratações para o órgão e novos concursos já estão ocorrendo.

“Isso vinha sendo noticiado continuamente pela imprensa e relatado pelos próprios funcionários dos órgãos. Diante desse cenário, é comum que servidores que atuem na causa ambiental, mas não necessariamente em fiscalização, ajam para suprir essa lacuna que vem sendo gerada nos últimos anos”, relata o docente da UFPB.

No entanto, ele conta que exercer esse papel pode ser extremamente arriscado em áreas remotas, onde o próprio órgão de fiscalização tem dificuldade de acessar. “Isso porque o Governo Bolsonaro passava uma mensagem que atividades ambientais ilegais seriam impunes, ao menos ao longo da gestão. Essa mensagem foi assimilada dessa forma e era difundida entre garimpeiros que atuam sem licença ou por contraventores que atuam na retirada ilegal de madeira, por exemplo, especialmente em áreas preservadas, como em terras indígenas e unidades de conservação. Espero que as coisas mudem agora”, analisa o cientista.

Ameaça contra ambientalistas

Na ótica de Leandro Giacomin, o desaparecimento do indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, precisamente em 5 de abril, quando faziam uma viagem na região do Vale do Javari, no Amazonas, é apenas mais um exemplo de como praticantes de atividade ilegal têm entendido que não serão punidos se continuarem a praticá-las. “Há uma série de estatísticas recentes que mostram que o Brasil é o país mais perigoso do mundo para ativistas da causa ambiental, cenário que se agravou nos últimos anos”, finaliza o professor da UFPB.

Relator especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA), o colombiano Pedro Vaca Villarreal, que acompanha a investigação dos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, disse, no ano passado, que o Brasil é país mais perigoso do mundo para defender o meio ambiente.

A Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais do órgão apontou, em monitoramento, que o país está na quarta posição no ranking mundial em número de assassinatos de ativistas ligados a causas ambientais, com 20 homicídios registrados em 2020.

Modelo de gestão

O professor do Departamento de Sistemática e Ecologia da UFPB é um dos organizadores do livro Biodiversidade na Floresta Nacional do Tapajós e na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns,  lançado em 2022, Leandro Giacomin, sublinha que Florestas Nacionais e Reservas Extrativistas são unidades de conservação que permitem o uso sustentável dos recursos.

Conforme o cientista, nestes tipos de UCs, assume-se a existência de residentes em seu interior e que esses residentes podem explorar os recursos para sua subsistência, desde que isso seja feito de forma ordenada e em uma parte da unidade. Essas atividades devem conviver em harmonia com visitação por turistas e atividades de pesquisa que são conduzidas.

“É, portanto, um modelo muito promissor de uso dos recursos. As pessoas que residem ali têm a oportunidade de gerar riqueza para sua subsistência, mas essa riqueza está associada à manutenção da floresta, o que reduz muito o impacto das atividades associadas”, reitera o pesquisador.

Segundo Leandro Giacomin, a Floresta Nacional do Tapajós, por exemplo, foi a primeira UC do Brasil a implementar um manejo madeireiro que é conduzido por comunitários, através de uma cooperativa. Os comunitários assumem o compromisso de explorar madeira em uma pequena área da UC. A renda obtida pela exploração é repartida pelos cooperados que residem na UC, não é concentrada nas mãos de grandes empresários ou conglomerados, e o restante da UC deve ser protegido, com ajuda dos próprios cooperados.

“É um excelente exemplo do poder público atuando junto à sociedade civil para benefício de ambas as partes e para funções muito nobres: preservar o meio ambiente e gerar e distribuir renda a partir dos recursos naturais. Esse modelo, até pouco tempo inédito, tem se mostrado muito promissor”, analisa Giacomin.

Acervos biológicos

Outro ponto relevante acerca da conservação do meio ambiente é a necessária existência de acervos biológicos, com o intuito de preservar um conhecimento básico e essencial da biodiversidade: quais são as espécies que coabitam o planeta conosco e onde elas ocorrem.

Para Leandro Giacomin, esse conhecimento é básico para diversas outras áreas da ciência, como áreas que exploram espécies que podemos consumir ou que podem melhorar espécies que já consumimos ou áreas que buscam novos fármacos para doenças que ainda não possuem tratamento eficaz, por exemplo.

“Mas mais do que servir a outras áreas da ciência, conhecer as espécies que habitam o planeta, quais são e onde ocorrem, é uma questão que está ligada à nossa própria sobrevivência. Hoje entendemos que nossa sobrevivência está intimamente ligada a serviços que a natureza nos provê de forma gratuita (chamados de serviços ecossistêmicos) e um dos principais desafios para a manutenção da nossa espécie no planeta é justamente a perda desses serviços em médio e longo prazo”, adverte o pesquisador da UFPB.

De acordo com ele, a chamada “crise da biodiversidade” tem gerado longas discussões sobre o que precisa ser feito em curto prazo para reduzir o impacto do nosso modo de explorar os recursos conduzido até aqui. Quaisquer informações sobre essa temática estão primordialmente contidas em coleções biológicas, que são acervos que contém exemplares de espécies das mais diversas linhagens de plantas, animais, fungos e microrganismos, com informações sobre sua procedência.

Leandro Giacomin enfatiza que as coleções biológicas, no Brasil e no mundo, estão concentradas em sua maioria em instituições públicas de ensino e pesquisa. “Apesar de sua importância, no Brasil, o incentivo continuado por parte de órgãos de fomento é praticamente inexistente e é comum que as próprias instituições que mantém as coleções não reconheçam suas necessidades básicas”, alarma o cientista.

Ele menciona que são acervos muitas vezes mantidos simplesmente pela paixão do pesquisador-curador pela atividade de colecionar e pela importância vislumbrada por ele e não compreendida por instâncias superiores. “Se as coleções são pouco incentivadas, iniciativas para preencher lacunas de conhecimento em áreas ainda pouco exploradas, como a Amazônia, são ainda menos comumente apoiadas por agências de fomento”, lamenta Giacomin.

Intercâmbio de conhecimento

O livro Biodiversidade na Floresta Nacional do Tapajós e na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns foi organizado em parceria com Carlos Brocardo, atualmente professor temporário na Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

A obra, lançada em maio de 2022, está disponível para download gratuito e apresenta, em 24 capítulos, esforços de pesquisadores de diversas universidades e institutos de pesquisa no Brasil e no exterior para compilar informações sobre as mais variadas formas de vida no baixo Rio Tapajós, no Pará, entre elas algas, fungos, insetos, vertebrados, árvores, entre outros, resultado de estudos executados durante vários anos.

O livro apresenta 24 capítulos sobre as mais variadas formas de vida no baixo Rio Tapajós, no Pará (Foto: Divulgação)

Ao tratar especificamente de duas unidades de conservação de uso sustentável federais, a Floresta Nacional do Tapajós e a Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, a iniciativa, além de reforçar a importância da preservação da Amazônia para as futuras gerações, busca mostrar que isso só é possível com o efetivo envolvimento das pessoas.

Segundo Leandro Giacomin, há o senso comum de que a Amazônia é o maior contínuo de floresta protegida do planeta e que contém uma biodiversidade estonteante, mais expressiva que qualquer outra região.

Mas, na avaliação do professor da UFPB, o conhecimento sobre a biodiversidade amazônica é incompleto e, de certa forma, inacurado, porque não é possível dizer com precisão sobre aquilo que não se conhece bem, tendo em vista que há muitas lacunas de conhecimento.

“A Floresta Nacional do Tapajós, por exemplo, é a Unidade de Conservação (UC) gerida pelo ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade] com maior número de pesquisas ocorrendo no Brasil. No entanto, não estava disponível um trabalho de síntese do conhecimento sobre a biodiversidade da Unidade”, destaca Giacomin.

Segundo o docente da federal paraibana, o livro é a primeira iniciativa de síntese e representa um marco. “Iniciativas como esta são fundamentais para manejo nas unidades de conservação, já que Florestas Nacionais são unidades que permitem atividades de manejo e extrativismo”, afirma o cientista.

Além de ser um dos organizadores do livro, Leandro Giacomin é autor dos capítulos introdutório e conclusivo e autor principal do capítulo que versa sobre a diversidade de plantas com sementes.  Ele conta que, em ambas as UCs retratadas no livro, há um número considerável de habitantes e famílias distribuídas em várias comunidades. Na Floresta Nacional do Tapajós existem cerca de mil famílias e 4 mil habitantes e, na Reserva Extrativista Tapajós Arapiúns, residem cerca de 25 mil pessoas.

Parte do acervo sobre a diversidade das plantas no baixo Rio Tapajós, publicada no livro “Biodiversidade na Floresta Nacional do Tapajós e na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns” (Foto: Leandro Giacomin)

Esses comunitários comumente ajudam nas pesquisas conduzidas nas UCs. “Eles são detentores de saberes e de conhecimento tradicional que não estão registrados em livros e manuais. A convivência com os comunitários possibilita um intercâmbio de conhecimentos único”, relata o professor da UFPB.

De acordo com Leandro Giacomin, o que consideramos sítios de pesquisa, os comunitários consideram sua casa, parte de seu quintal. Eles apresentam uma intimidade com as formas e processos observados, muitas das vezes sob um olhar que não nos é comum e nem sequer possível.

“Os dados que nós pesquisadores geramos têm, como sua função primordial, permitir gerar conhecimento para a sociedade e embasar decisões dos gestores, decisões essas que vão impactar diretamente a vida dos comunitários. Eles têm todo direito de conhecer e se beneficiar do conhecimento que produzimos e que é ainda mais completo com a participação deles”, defende o pesquisador.

No ponto de vista de Leandro Giacomin, é de bom tom que os verdadeiros donos das terras, que têm um vínculo com ela, saibam sobre os processos observados e tenham acesso aos achados antes mesmo do restante da sociedade. “Eles são os mais imediatamente interessados. Algumas das informações que geramos podem ter impactos diretos em seu dia a dia, além de representar uma iniciativa ímpar e gratuita de descentralização e difusão do conhecimento e alfabetização científica”, pontua o organizador do livro.

Giacomin salienta ainda que esses residentes podem usar o potencial das UCs para fins diversos, que podem gerar renda para suas famílias, como ecoturismo, extrativismo de recursos naturais, manejo de recursos e pequenas culturas. A maioria dos residentes, inclusive, tem sua renda advinda de atividades executadas dentro das UCs, que passam por um controle do órgão gestor, o ICMBio.

“Essas comunidades também recebem uma série de auxílios e incentivos, como cursos de capacitação, iniciativas de implementação de infraestrutura básica conduzidas por ONGs, entre outros. É importante ressaltar que são terras federais e que há um contrato de uso pelos residentes. Eles podem usufruir das terras e não precisam recolher nenhum imposto territorial por isso”, esclarece o cientista.

Na avaliação de Leandro Giacomin, as instituições de ensino e pesquisa podem auxiliar na gestão ambiental de muitas formas. A principal delas tem a ver com geração de dados e ferramentas analíticas que embasem a tomada de decisões, considerando que, no Brasil, a pesquisa está centrada em instituições de ensino, em especial nas universidades públicas.

“A maior parte das decisões de órgãos ambientais, por exemplo, utilizam informações que são geradas nas universidades, por professores e alunos de pós-graduação. Além disso, é comum que docentes e pesquisadores atuem em conselhos consultivos e deliberativos, seja de unidades de conservação ou em esferas do executivo, como nos ministérios que atuam diretamente em políticas ambientais, ainda que muitos conselhos de participação tenham sido desfigurados ou extintos no governo anterior e só agora estão sendo recompostos”, critica o docente da federal paraibana.

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 Pedro Paz é jornalista e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

Capa da matéria: Visão aérea do Rio Tapajós em Alter do Chão: explosão do garimpo no médio curso do rio é muito provavelmente a causa da mudança da cor da água, de acordo com análise do MapBiomas (Foto: Observatório do Clima)