Encontro reuniu lideranças indígenas, quilombolas e extrativistas de nove estados do Brasil e de quatro países na construção de um documento pela defesa dos territórios e do direito à consulta prévia.

Por Cecília Amorim

Durante a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), o quilombo do Abacatal, na região metropolitana de Belém, transformou a associação comunitária em um espaço para receber representantes de diversos biomas do Brasil e da Amazônia no V Encontro Nacional do Observatório de Protocolos de Consulta Prévia, Livre e Informada. No evento, os participantes elaboraram um documento para exigir que nenhuma decisão administrativa, legislativa ou empresarial possa ser imposta sem a consulta prévia às comunidades.

O encontro ocorreu na terça-feira (11) e reuniu representantes de nove estados brasileiros – Amapá, Amazonas, Sergipe, Pernambuco, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Goiás e Paraná – e delegações de três países da Amazônia – incluindo Brasil, Colômbia e Peru. Representantes do Chile também participaram. As lideranças almejam a incorporação do texto à carta final da COP30.

Vanusa Cardoso, presidente da associação dos moradores do quilombo Abacatal, afirma que é significativo mostrar os territórios que resistem diante de todas as violações. A liderança denuncia que é comum os projetos serem implementados sem consulta à comunidade, como determina a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

“Chega de pensar por nós, de achar que sabe o que é melhor para nós, sem falar com nós. O estado do Pará fala muito de nós, mas ele não fala com nós. Ou fala com uma parte de nós. A construção deste documento é oportuna e é sobre isso, sobre nós”, desabafa Vanusa.

A realização do encontro no quilombo Abacatal promoveu uma troca que ultrapassa as fronteiras do Pará, com experiências compartilhadas pelas diversas Amazônias da América Latina. As violações aos territórios continuam sendo uma realidade comum na região. Participaram quilombolas, povos indígenas, marisqueiras, pescadores e comunidades extrativistas.

“Estamos aqui dizendo que a Amazônia também é negra, e que esses povos precisam ser consultados, mas também precisam ter suas vozes respeitadas nas consultas. Quem vive no território sente primeiro os impactos de tudo”, afirma a liderança. 

O quilombo do Abacatal vê seu território ser atravessado pelas obras da Avenida Liberdade. O projeto deve ligar a Avenida Perimetral à Alça Viária, com a justificativa de desafogar o trânsito e reduzir o tempo de deslocamento entre Belém e os municípios vizinhos. Lideranças quilombolas afirmam que as contrapartidas sociais e ambientais negociadas com o Estado, como obras de infraestrutura, compensações financeiras e medidas de proteção ambiental, não estão sendo cumpridas.

Os moradores do Abacatal relatam que, desde o início das obras, têm enfrentado aumento da poeira, acidentes com moradores por falta de sinalização na obra, barulho intenso e restrição de acesso a áreas tradicionais de uso coletivo, sem que o governo tenha implementado as medidas compensatórias previstas.

‘Sem consulta, significa mais morte de lideranças’

Júnior Anderson Guarani, liderança do território Uapuã, no Mato Grosso do Sul, disse que o encontro do Observatório de Protocolos ajuda compreender melhor como funcionam os procedimentos autônomos de consulta prévia, livre e informada, especialmente em contextos onde grandes empreendimentos avançam sem diálogo com as comunidades. Ele citou o caso da ferrovia Ferroeste, um megaprojeto do governo federal já licenciado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e prestes a entrar em fase de leilão. Segundo o governo, o projeto afetaria apenas três territórios indígenas, número contestado pelas lideranças locais.

Júnior Anderson Guarani, liderança do território Uapuã, no Mato Grosso do Sul

“Só dos Guarani-Kaiowá são 62 territórios. O governo diz que vai atingir só três, indiretamente. Não houve consulta. O governo passa por cima e faz mesmo assim”, afirmou. Para Júnior, essa ausência de consulta agrava um cenário de violência histórica: “o Mato Grosso do Sul é reconhecido como uma Faixa de Gaza brasileira em relação aos povos indígenas. Sem consulta, significa mais mortes de lideranças”, denuncia.

Segundo ele, um dos grandes problemas que seu povo enfrenta hoje é a crise socioambiental, marcada pela falta de água potável, de acesso à saúde e de educação adequada. “Sem água não tem vida. Os poucos rios que restam no nosso território estão misturados com agrotóxico. As crianças ficam dias sem aula porque não tem água na escola. Isso afeta tudo: aprender, viver, sobreviver”, afirma.

Para ele, ter protocolos de consulta é garantir condições básicas de existência e pela defesa do território e da diversidade de biomas brasileiros. O líder avalia que os impactos climáticos não são só regionais, mas nacionais e interligados:

“O que acontece na Amazônia recai sobre ribeirinhos, quilombolas, mas também no Cerrado, Pantanal, Pampa. O que acontece em um bioma afeta outros. Está tudo interligado. A emergência climática é única. Mas estão tratando como se fosse isolada”, disse.

Na Amazônia colombiana, povos originários são proibidos de acessar a floresta em projeto de conservação

Andrés Forero, secretário da Coordenação Nacional dos Povos Indígenas da Colômbia (COMPI), veio ao Pará para compartilhar experiências de resistência diante do avanço da mineração e da exploração de petróleo e carvão na Colômbia.

“Nós não chamamos isso de recursos naturais, mas sim de recursos sagrados, porque fazem parte da Mãe Terra. O ouro, por exemplo, não usamos como luxo. Usávamos como tributo para nos conectar com a natureza”, afirmou. Segundo ele, o petróleo é entendido por seu povo como “o sangue do planeta” e, quando é retirado, “tudo ao redor morre”.

Ele ressaltou que sua participação se insere na Cúpula dos Povos, organizada paralelamente à COP30, onde a discussão parte das comunidades, e não de governos e corporações. “Não é a COP dos grandes poderosos que nos move, mas a Cúpula dos Povos, porque sabemos que o poder real está nos povos, que sempre cuidaram da terra”, afirmou. Para ele, as trocas realizadas no encontro fortalecem alianças entre povos indígenas e quilombolas, que compartilham histórias semelhantes de resistência.

Ele lembrou que o quilombo Abacatal, liderado historicamente por mulheres desde a fundação, dialoga diretamente com a história dos povos afrodescendentes colombianos, conhecidos como palenqueiros e raizais.

O secretário contou que no departamento de Caquetá, o povo indígena Nasa enfrenta a perda de acesso ao próprio território após a criação de um parque nacional natural sobre sua área coletiva. Segundo ele, a iniciativa contou com apoio de organizações ambientalistas internacionais, como a WWF, e reproduz um modelo de conservação inspirado nos Estados Unidos, que historicamente expulsou povos originários de locais, como o Parque Nacional de Yellowstone, sob o argumento da preservação.

Essa lógica, afirma, ignora o papel ancestral dos povos indígenas na proteção da floresta e acaba por excluir as comunidades que há séculos cuidam da biodiversidade amazônica. “A situação do povo Nasa, que luta para reaver seus direitos territoriais, é um exemplo de como certas políticas e parcerias de conservação podem violar os direitos indígenas na Amazônia colombiana”, disse.Para Andrés, a defesa da Mãe Terra só poderá ser verdadeira construída com quem habita e protege os territórios, mas não será efetiva sem a consulta ou participação dos povos. “Não queremos ser decorativos da COP. Queremos ser sujeitos da decisão, porque a Amazônia tem dono, e é o povo que vive nela”.

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Foto de capa: Cecília Amorim/ Carta Amazônia