Experiência de turismo comunitário conduzida pela Associação Na’na Kali’na une cultura, floresta e hospitalidade às margens do rio Oiapoque. Estivemos com a primeira turma de turistas para conhecer o roteiro.

Por Maria Silveira

No meio do rio Oiapoque, navegando pelas margens cobertas de buritizeiros, nosso barco seguia a maré até a aldeia Galibi, território do povo Galibi Kali’na. Passamos por debaixo da ponte que liga o Amapá à Guiana Francesa, deixando para trás a pressa.

“A pressa é inimiga da vida”, dizia Gèrard Lod, primeiro cacique do povo Galibi Kali’na do Brasil. Assim começou a experiência Paläbala, o primeiro projeto de turismo de base comunitária em território indígena no Amapá, coordenado pela Associação Na’na Kali’na. Paläbala, em kali’na, significa borboleta. Quando ela aparece, é sinal de que visitantes estão chegando.

E foi assim que chegamos, o primeiro grupo de turistas a fazer o roteiro.

Fomos recebidos com abraços de boas-vindas pelo cacique e moradores da comunidade, além de um café da manhã que trazia a tapioca, a pupunha e frutas como o cacau e o cupuaçu. Tudo cultivado ali, por quem estava nos acolhendo.

Entrada da aldeia Galibi, Oiapoque, Amapá. (Foto: Leonardo Lopes/ Iepé/ Na’na Kali’na)

A história dos Galibi Kali’na

Reunidos no casarão da comunidade, éramos 16 visitantes e várias pessoas da aldeia, filhos, sobrinhos, netos e demais parentes de seu Gèrard Lod. Parte do roteiro de turismo ali é sentar e ouvir a história da chegada dos Kali’na ao Brasil.

Em 1950, Gèrard foi o líder de uma expedição marítima que saiu de Maná, na Guiana Francesa, junto com seus familiares, até as margens do rio Oiapoque, assim estabelecendo a primeira comunidade do povo Galibi Kali’na no Brasil.

A história de seu Geraldo, como ficou conhecido em terras brasileiras, começa antes disso: em 1946, ele sonhou em vir ao Brasil já que a vida de seu povo estava difícil na Guiana Francesa. Ele ouvira seu professor descrever como “o país dos verdadeiros índios”. Em 1948, decidiu se aventurar. Sem saber português, convidou seu primo Joseph Lieutenant, e embarcou em uma jornada de seis meses para conhecer o Brasil.

Encantado com a terra e prevendo um futuro bom para seus filhos e netos, voltou para casa e se preparou por dois anos, construiu canoas, reuniu sementes, farinha, beiju e poraquê moqueado. Trinta e oito pessoas navegaram a remo para o Brasil.

Essa história é mais do que uma memória, é a base do fortalecimento da comunidade, que hoje se volta para suas raízes, reafirmando sua cultura, língua e identidade. Hoje, a aldeia é multiétnica — já que não é costume dos Galibi Kali’na casar com familiares — e abriga filhos, netos e bisnetos dessas famílias, além dos demais povos da região.

Grafismos do povo Galibi Kali’na

Ainda no casarão, cercados por artesanatos, vestimentas tradicionais e bolsas com grafismos produzidos pelas mulheres da associação Na’na Kali’na, Sônia Jeanjacque, do povo Galibi Kali’na, nos explicou sobre os grafismos de seu povo. O jenipapo, fruto que gera um pigmento negro quando ralado, não é apenas uma tinta: é proteção. “As marcas são dos animais, mas também são dos espíritos. Eles nos fortalecem.”

Sônia Jeanjacque é secretária extraordinária dos povos indígenas do Amapá e Norte do Pará e grande conhecedora das marcas do seu povo Galibi Kali’na. (Foto: Leonardo Lopes/ Iepé/ Na’na Kali’na)

“Os espíritos não vêm pra fazer mal, eles vem para nos fortalecer.  As marcas são a nossa resistência indígena, elas fortalecem a nossa cultura”, afirma Sônia.

Conhecendo a comunidade Galibi Kali’na

Fomos guiados por entre casas e árvores históricas. Durante a caminhada, dois ou três moradores se aproximavam, contavam suas histórias sobre a floresta, o rio e a cultura. Em pequenos grupos, aprendíamos ouvindo.

O papagaio é brabo, mas toda vez que recebia carinho, se arrepiava e abria as penas da cabeça de satisfação. (Foto: Leonardo Lopes/ Iepé/ Na’na Kali’na)

A cada parada, os moradores nos mostravam o cotidiano da aldeia e como utilizavam no seu dia a dia o que crescia ali. As plaquinhas de identificação das árvores foram feitas pelas crianças, na escola da comunidade.

Entre as espécies, o hortelã é usado como chá para aliviar gases em bebês. Da árvore de quina, se usa as folhas para um chá contra a malária. Da cuieira, as cuias pequenas são usadas como maracás, já as cuias grandes são usadas para servir farinha ou fazer chibé – mistura de farinha, água, pimenta e tucupi.

O uso medicinal da quina é um conhecimento antigo dos povos indígenas. (Foto: Leonardo Lopes/ Iepé/ Na’na Kali’na)

Na beira do rio, Kassia Lod, coordenadora da Associação Na’na Kali’na, explicou como a comunidade se une em mutirão, para a colheita do açaí, por exemplo: “Quando acontece uma emergência, a gente se junta, colhe os frutos da floresta, vende, e faz acontecer. Sempre que precisamos, nós recorremos à natureza”.

Para a turista francesa Alizee de Bollardiere, o que mais a marcou foi justamente essa união da comunidade. “Gostamos de ver o cotidiano da comunidade, nos sentimos bem-vindos. Todo mundo está bem organizado, gostei da participação de todos da comunidade”, afirmou.

Menu Galibi

O almoço ganhou um espaço especial nessa história, de tão saboroso que foi não poderia passar em branco, já que a comida foi alvo do principal elogio dos visitantes:

Gilson Torres: “O cardápio é original, é essa a essência que o turista quer comer. Parabéns, um cardápio muito bom.”

Adriana Franklin Millecam: “Menu regional e bom, bem típico”.

Marcelo de Sá Gomes: “Muito boa a experiência gastronômica, regional e orgânica”.

O sabor era marcante: o azedo do tucupi com o toque cítrico do limão. A pimenta, embora não fosse a de cheiro, só o cheiro dela perfumou meu prato deixando o gosto mais interessante e complexo. Para quem tiver coragem, vale morder uma pimenta inteira, como feito pelos Kali’na.

Com tantas boas opções, todos repetiram a refeição. (Foto: Leonardo Lopes/ Iepé/ Na’na Kali’na)

Depois do almoço, um descanso na rede. Um intervalo de chuva forte que Karolina Costa, uma das visitantes, adorou. “Eu sou da Amazônia e essa é a Amazônia. A chuva não atrapalha. Ela é parte”, disse.

No limite do território

Seguimos o ramal até o limite da Terra Indígena Galibi. Apesar da chuva o caminho valia cada passo. Ao nosso redor, roças com bananeiras gigantes, mandioca e batata se alternavam com árvores frondosas.

Durante a caminhada, as visitantes da Guiana Francesa encontraram uma perema filhote. Pensaram que fosse uma semente, mas, ao tocá-la, ela abriu as patinhas do casco como quem diz “oi” antes de ser solta mais adiante, num igarapé.

A perema é uma espécie de tartaruga de água doce nativa da Amazônia. (Foto: Maria Silveira/ Iepé)

O visitante Marcelo de Sá Gomes, comentou sorrindo: “Adorei andar na chuva. Alguns anos atrás, precisei parar na comunidade Galibi por causa de um forte temporal e fui acolhido. Dessa vez, foi dia de visita, mas o Amapá já traz no nome: é lugar de chuva.”

No final da trilha, chegamos ao igarapé Morcego, o marco que delimita o território. Nos contaram que todos os anos a comunidade organiza uma grande vigilância: os homens se reúnem e, por três dias, limpam o limite da terra, o que ajuda a evitar invasores e manter o território protegido.

Caminhada até o limite da Terra Indígena Galibi. (Foto: Maria Silveira/ Iepé)

Ali perto, recolheram um pouco de breu branco direto da árvore. Queimaram a resina, e o cheiro se espalhou como incenso, delicioso. Ganhei de presente e trouxe para casa.

Voltamos nos carros de apoio, contando histórias da floresta, de visagens (espíritos) e felizes pelo passeio. A chuva nos uniu mais do que esperávamos.

De volta à aldeia, fomos recebidos com banana frita e café quentinho, o tipo de acolhida que aquece o corpo e o coração.

A importância do turismo de base comunitária

O turismo de base comunitária é uma alternativa de desenvolvimento sustentável que mantém a floresta em pé e valoriza os modos de vida tradicionais. Em territórios indígenas, essa prática também contribui para a proteção territorial. Ajudando na fiscalização do território, coibindo invasores e prevenindo o desmatamento e a pesca ilegal.

“Derrubavam a árvore e nem aproveitavam o açaí”, relembra Edervan Forte dos Santos, mais conhecido como Deca, enquanto apontava para a margem do rio durante nossa chegada. Pilotando o barco, ele comentava sobre os invasores que entravam no território para desmatar ilegalmente.

Além disso, o turismo surge como complemento de renda já que uma das principais bases econômicas da comunidade, o cultivo da mandioca, foi afetada por uma praga conhecida como vassoura-de-bruxa da mandioca. A doença, observada em 2024 nas roças das Terras Indígenas do Oiapoque, tem sido associada às mudanças climáticas e compromete diretamente a segurança alimentar das famílias.

“O turismo é sustentável, protege o meio ambiente e fortalece a nossa cultura”, disse Renata Lod, vice-cacica do povo Galibi Kali’na, destacando o potencial da atividade como alternativa econômica e de valorização da cultura.

Turistas franceses e brasileiros puderam experienciar a vivência Paläbala. (Foto: Leonardo Lopes/ Iepé/ Na’na Kali’na)

Até logo

“Mostramos quem somos de verdade e como a gente sabe nossos conhecimentos”, disse Kassia Lod. “Essa é a Amazônia real.” A fala reflete sobre o que é o Turismo Paläbala: uma vivência construída com o envolvimento de toda a comunidade. É a primeira iniciativa de turismo indígena legalizado pela Funai no Amapá. Foram, no mínimo, dois anos de trabalho para que tudo isso se tornasse possível.

Antes de ir embora, ganhei um brinco de Paläbala da dona Cristina. A borboleta que anuncia a chegada dos visitantes agora também me lembra que posso, e quero, voltar.

Brinco feito pela senhora Cristina Lod. (Foto: Leonardo Lopes/ Iepé/ Na’na Kali’na)

Irupamam. Obrigado em Kali’na.

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Foto de capa: Leonardo Lopes/ Iepé/ Na’na Kali’na)