O massacre, ocorrido em agosto de 2020 a partir de uma operação da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas, resultou na morte de dois indígenas Munduruku e de quatro ribeirinhos, além do desaparecimento de duas pessoas da comunidade
Por Wérica Lima
Marcado por debates com representantes da sociedade civil, do Ministério Público Federal (MPF), da Defensoria Pública da União (DPU) e do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), o Seminário “Massacre do Rio Abacaxis e Mari-Mari: Memória e luta por justiça! ”, realizado entre 08 e 09 de agosto, registrou o quarto ano sem respostas concretas das autoridades às vítimas e para a própria sociedade amazonense, que requerem explicações e justiça.
Organizado pelo laboratório Dabukuri – Planejamento e Gestão do Território na Amazônia, vinculado ao Departamento de Geografia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), o seminário permite manter viva a memória das vítimas, trazer novas denúncias e pressionar a justiça na tomada de providências.
“Mesmo diante de todo o trauma causado pela violação de seus direitos humanos fundamentais, indígenas e ribeirinhos ainda mantêm viva a teimosia por justiça e esperança de um futuro melhor, no qual anseiam pela responsabilização dos envolvidos no massacre e pela indenização às vítimas e seus familiares”, diz Rafael Diniz, pesquisador do Grupo de Dabukuri e professor de Geografia da Ufam.
Estiveram presentes no seminário representantes da Defensoria Pública da União, do 5º e 15º Ofício do Ministério Público Federal e o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). A organização do evento convidou ainda o Ministério da Justiça e a Polícia Federal que não puderam estar presentes. A Defensoria Pública do Estado do Amazonas também foi convidada, mas retornou um primeiro email dizendo que não poderia participar devido a agendas já assumidas, mas não retornou um segundo contato que pedia um substituto. Já o Governo do Estado do Amazonas e a Defensoria Pública da União de Manaus não responderam ao convite.
Morosidade no caso
O massacre, ocorrido em agosto de 2020 a partir de uma operação policial sob pretexto de combate ao tráfico, promovido pela Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP-AM), resultou na morte de dois indígenas Munduruku e de quatro ribeirinhos, além do desaparecimento de duas pessoas.
A ação iniciou após supostamente o ex-secretário executivo do Fundo de Promoção Social do Governo do Amazonas, Saulo Moysés Rezende Costa, levar um tiro enquanto praticava pesca esportiva ilegal no rio Abacaxis durante a pandemia.
Além dos assassinados, uma série de violações de direitos humanos ocorreram contra as populações ribeirinhas e indígenas, dentre torturas, ameaças e destruição de bens.
Passados quatro anos de investigações, o caso avança lentamente. Até o momento, apenas o ex-secretário de Segurança Pública do Amazonas, coronel Louismar Bonates, e o coronel da Polícia Militar Airton Norte, foram indiciados em abril de 2023. A Polícia Federal segue investigando cerca de 150 policiais, entre civis e militares, suspeitos de participarem das ações de extermínio no Rio Abacaxis e Mari-Mari.
As vítimas e toda a sociedade civil seguem aguardando que o Ministério Público Federal (MPF) denuncie os indiciados e dê prosseguimento no caso.
Segundo o procurador Fernando Merloto Soave, que atua no ordenamento fundiário e pesqueiro do caso pela 6ª câmara do MPF, os próximos passos do seu trabalho, como resultado do Seminário, é marcar uma reunião com o Incra, Funai, ribeirinhos e indígenas para alinhar a regularização fundiária, intimamente ligada com as invasões e turismo ilegal. A previsão é de que até o final de 2024 o plano de utilização do Incra esteja pronto.
“São muitos problemas, mas ao mesmo tempo você tem um povo indígena e ribeirinho extrativista lá que está se unindo, que está buscando lutar junto, você tem as instituições parceiras também junto, então você tem um cenário ruim, mas ao mesmo tempo você tem pontos positivos”, ressalta o procurador.
O que chamou a atenção do procurador durante o encontro, foi a unificação da luta. Na ocasião, os indígenas Munduruku presentes ressaltaram não apenas as violações e perdas vividas por seu povo, mas também por ribeirinhos e pelo povo Maraguá.
“Esse evento que acabou de acontecer é um exemplo disso, quatro anos depois não esqueceram, continuam nessa luta, os munduruku aqui junto também, lutando pela reparação das duas mortes lá no Mari- Mari, então acho que essa luta tem que continuar”, afirmou Merloto.
Ação Civil Pública
Em 15 de julho, a Procuradora da República Janaina Mascarenhas (15º Ofício) ajuizou uma Ação Civil Pública (ACP) contra à União, Funai e Estado do Amazonas, que requer a condenação em danos coletivos para reparação civil das comunidades do Abacaxis e Mari-Mari no valor de R$ 20 milhões.
Na Ação Civil, a procuradora detalha todas as problemáticas e resquícios deixados pelo massacre que verificou in loco, junto ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), em abril de 2024. Na ocasião da visita, o CNDH emitiu Nota Pública sobre a missão realizada nos territórios dos povos indígenas e comunidades tradicionais ribeirinhas do Rio Abacaxis e recomendou ao “poder público adotar medidas para a superação deste tão desolador cenário”.
Presente no Seminário, Janaina Mascarenhas explicou a natureza da indenização solicitada. “Quando o estado ou a União, algum ente público comete uma violação de direitos, ele precisa reparar e essa reparação ela pode se dar de várias formas. A forma mais simples é a reparação pecuniária, ou seja, eu violei o seu direito e eu vou te pagar um valor X por essa por essa violação”, disse.
Para a procuradora, todas as violações possuem inúmeras provas e é evidente o atentado do Estado contra as populações tradicionais e povos indígenas. Ela afirmou que fará o possível para que as comunidades tenham uma reparação coletiva e ressaltou ainda que a reparação pode ocorrer antes do fechamento criminal do caso..
“A gente fez esse pedido de pagamento de um valor em danos morais porque a gente entende que foram vários direitos que ofenderam a própria integridade das comunidades, então isso a gente chama de danos morais e a compensação por esses direitos em valor de dinheiro indenizatório a gente pediu no valor de 20 milhões de reais”, afirmou a procuradora.
Janaina ressaltou ainda que além da reparação coletiva, é possível que os sobreviventes e os familiares das vítimas de homicídio do massacre também peçam danos individuais de reparação.
Outro ponto mencionado pela procuradora é que buscou diálogo com o governo federal na tentativa de acessar mecanismos de segurança para a região dentro do Plano Amas, “destinado ao desenvolvimento de ações de segurança pública que observem as necessidades e as especificidades dos Estados que compõem a Amazônia Legal com vistas à redução de crimes ambientais e conexos”.
Novas denúncias
A violência policial cometida a serviço do estado, que levou à execução de seis pessoas e deixou duas desaparecidas entre os municípios de Nova Olinda do Norte e Borba (distante 135 km de Manaus), registrada em agosto de 2020, intensificou ainda mais os problemas que já existiam na região.
O estopim que levou ao massacre, advém justamente de uma ameaça que segue acontecendo no Rio Abacaxis e Mari-Mari: o turismo e pesca esportiva ilegal. Ao final do seminário, novos relatos e denúncias foram realizadas no MPF, a respeito de invasões.
Só este ano, ao menos três lanchas de pesca ilegal estiveram presentes nos rios Abacaxis e Mari-Mari. Outra denúncia, segundo as vítimas, está relacionada à visita in loco do Incra ocorrida no início de 2024, que durante levantamento fundiário estava identificando possíveis áreas de exploração mineral.
A presença intensa do tráfico de drogas unido às invasões e ameaças dos próprios órgãos governamentais têm gerado desconfortos, evidenciando que após tanto tempo, o Estado não tem realizado fiscalizações e assegurado a vida das populações.
“Os indígenas aproveitaram o momento para fazer denúncias ao MPF referente a essas invasões e cobrar providências para que seus territórios sejam livres e protegidos das invasões que ameaçam suas vidas. Também relataram a precariedade no atendimento de saúde e na educação escolar indígena nas comunidades, mostrando como o Estado continua omisso diante das violações de direitos desses povos”, explica Jussara Góes, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Até o momento, nenhuma base da Polícia Federal foi instalada no Rio Abacaxis e Mari-Mari. Também não existe fiscalização constante e quando a Força Nacional esteve após o massacre, ainda em 2020, ficou alocado apenas na cidade de Nova Olinda do Norte, conforme relato das vítimas.
Para João Batista, assessor jurídico do Cimi, o tempo de resposta dos órgãos tem sido lento perante às constantes ameaças que surgem nos Rios Abacaxis e Mari-Mari.
“A gente entende que é uma situação que eles [ribeirinhos e indígenas] se sentem impotentes. Impotentes e marginalizados porque nunca têm uma resposta efetiva e aparentemente nenhum tipo de ação para tentar alcançar e garantir qualquer tipo dos direitos que eles têm”, explica Batista.
Marcado na memória
Indígenas e ribeirinhos pedem incansavelmente por justiça e ainda choram pelas perdas, humilhações e torturas psicológicas e físicas que vivenciam até os dias atuais. Durante o encontro, uma das vítimas presentes relatou ter lutado para se manter firme em acreditar que a justiça venha, e o quanto as famílias sofrem na espera por reparação.
O Manifesto “Um ato de covardia da polícia e do Estado do Amazonas para não esquecer”, lido durante o encontro, ressalta a falta de confiança das famílias no Estado, e chama de “arsenal humano de guerra do estado”, as forças policiais utilizadas para matar e torturar as comunidades ribeirinhas e indígenas do Rio Abacaxis e Mari-Mari.
O documento reconhece o empenho da Procuradora da República Janaina Mascarenhas (15o Ofício) em ajuizar a ação civil pública com vistas à reparação civil de danos à coletividade do Rio Abacaxis e Mari-Mari e chama a atenção para que as demais entidades públicas deem a mesma celeridade e atenção ao caso.
“Com este exemplo, clamamos novamente o Ministério da Justiça, o 9o Ofício Criminal do Ministério Público Federal no Amazonas e a Polícia Federal para que se mantenham firmes no propósito de finalizar as investigações, indiciar, denunciar todos os envolvidos, atuar com imparcialidade, sem ceder às interferências dos poderes políticos e econômicos que atuam fortemente no caso”, diz o Manifesto.
O Manifesto defende ainda a quebra do sigilo do inquérito policial, por entender que ele beneficia e acoberta os envolvidos nos crimes. Reivindica também providências a serem tomadas ainda em 2024. Leia o Manifesto na íntegra.
“Os episódios perversos de violência policial promovidos contra indígenas e ribeirinhos nos rios Abacaxis e Mari-Mari, em agosto de 2020, continuam bastante presentes na memória e nos corpos das vítimas que sobreviveram ao massacre e das famílias que perderam seus entes queridos”, conclui Rafael Diniz, pesquisador do Grupo Dabukuri.
Para Jussara Góes, do Cimi, a partir do seminário e do Manifesto, assim como pela ausência dos órgãos no encontro, chega-se à conclusão de que as fontes de ignição que levaram ao massacre continuam ativas nas regiões do Abacaxis e Mari-Mari.
“Como resultado do encontro foi possível um diálogo entre as populações tradicionais e os órgãos públicos, relatando as violações de direitos humanos que ocorreram em 2020, e o que continua a acontecer até hoje, como as invasões de seus territórios para a pesca, caça e turismo predatório, além do garimpo que já se faz presente no território do povo Maraguá”, afirma.
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Wérika Lima é jornalista colaboradora do Seminário Massacre do Abacaxis e Mari-Mari: Memória e Luta por Justiça
Foto de capa: Luiza Machado/Cimi Norte 1