A construção da via, em Ananindeua, é apontada pelo Governo do Pará como um legado da COP30. No entanto, moradores do Quilombo do Abacatal denunciam racismo ambiental e afirmam que a obra de um túnel para acesso à estrada foi feita sem consulta prévia, afetando a comunidade.

Por Adison Ferreira

Um portão de ferro, vigiado 24 horas por moradores, marca a entrada do Quilombo do Abacatal, em Ananindeua, no Pará, um território tradicional com mais de 300 anos de resistência. Às margens do rio Uriboquinha, afluente do rio Guamá, a comunidade tem enfrentado diversos impactos socioambientais nos últimos anos, resultado da instalação de obras de infraestrutura nas proximidades. 

A entrada do portão de ferro, construída há 11 anos, é uma forma de evitar o acesso de pessoas não autorizadas e que podem representar alguma ameaça ao território. Para passar, é preciso a liberação da Associação de Moradores e Produtores Quilombolas de Abacatal/Aurá (AMPQUA). 

Portaria conta com um sistema de revezamento entre os comunitários para fazer a vigilância no local (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Carta Amazônia)

Mesmo assim, as orientações de proteção ao quilombo seguem desrespeitadas. A comunidade denuncia empreendimentos como a construção da avenida Liberdade, uma das principais obras de infraestrutura e mobilidade urbana em curso na Grande Belém. Os moradores também veem com preocupação a criação de um túnel conectado à via, feito sem a consulta prévia à comunidade.

Com 13,4 quilômetros, a avenida é citada pelo Governo do Pará como um dos principais legados da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30) e está prevista para ser entregue ainda este mês.

No entanto, a rapidez para a conclusão não se reflete nas obras de compensação previstas para a comunidade, segundo Melina Maya, artista e educadora do território. “A construtora tem intensificado os trabalhos com diversos trabalhadores na obra para seguir com esse cronograma que foi apresentado pelo governo por conta da COP30. Mas a gente não vê essa mesma celeridade nas obras de condicionantes do quilombo”.

Vanuza Cardoso, liderança espiritual da comunidade e integrante da sexta geração de mulheres, afirma que os impactos do projeto viário não são isolados, mas mais um capítulo de uma longa história de violações. “Os animais estão sendo atropelados, a produção de açaí e pupunha caiu e a especulação imobiliária já chega à porta”, relata.

A rodovia corta a vegetação nativa da Área de Proteção Ambiental (APA) Metropolitana de Belém, e passa às margens do Parque Estadual do Utinga, que pode ter a biodiversidade impactada pela obra. 

Para o cientista social André Farias, pesquisador do Núcleo de Meio Ambiente da Universidade Federal do Pará (UFPA), os impactos imediatos da avenida Liberdade incluem, por exemplo, o aumento considerável no transporte de cargas. Atualmente, mesmo com a avenida Perimetral, o fluxo intenso de caminhões que levam mercadorias para embarque no porto de Vila do Conde, usando a Bernardo Sayão como rota, já causa problemas. Com a nova avenida, esse trânsito de cargas deve crescer ainda mais.

“Embora o governo defenda a obra com o argumento de melhorar a mobilidade urbana, o verdadeiro objetivo por trás da construção da avenida Liberdade é facilitar o escoamento de mercadorias. Na prática, trata-se de criar uma rota mais curta, rápida e barata para o transporte de produtos até o porto de Vila do Conde. No fim das contas, essa é a motivação real por trás da obra, não é uma avenida feita para as pessoas, mas para atender aos interesses do mercado e da logística de cargas”, afirma o pesquisador.

‘Será que acham que somos uma fauna humana?’

Os quilombolas relatam que a construção do túnel para dar acesso à avenida Liberdade foi realizada sem a devida consulta prévia, livre e informada, como estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Segundo as lideranças, a construção não foi deliberada em nenhuma reunião com os representantes do governo.

O projeto da avenida prevê 34 passagens de fauna, estruturas semelhantes à instalada na entrada do Quilombo Abacatal, que forma o túnel de acesso ao território. Para Melina, a forma como o projeto foi conduzido mostra a falta de respeito à população local.

“Eles [governo estadual] tinham falado que esses túneis seriam apenas para o caminho dos animais.  Será que eles acham que somos uma fauna humana? Será que a ideia é colocar os moradores para usar os mesmos caminhos projetados para os animais? Para mim, isso é mais um exemplo de racismo ambiental. O governo não está nem aí para a comunidade quilombola”, questiona. 

Túnel de acesso dos moradores do quilombo na Av. Liberdade (Foto: Adison Ferreira/Carta Amazônia)

O túnel tem cerca de quatro metros de escavação. A obra preocupa os moradores, que se sentem inseguros em trafegar pela via, pois, segundo eles, a escavação está abaixo do leito de uma nascente, próxima da obra. Outro receio é que no inverno amazônico, entre dezembro e maio, com o aumento das chuvas na região, toda a área escavada fique submersa.

“A empresa responsável pela obra colocou umas vigas de concreto e cima desse túnel, sem nenhum pilar. É só barro que está ali sustentando aquelas estruturas. E se um negócio daquele cair? Porque quando chover, todo aquele barro vai deslizar. Sem contar que muitos caminhões pesados vão passar por cima dessa ponte. Isso é um risco pra gente”, denuncia o músico Paulo Otas, morador da comunidade.  

Moradores temem passar pelo túnel. (Foto: Adison Ferreira/Carta Amazônia)

Projeto foi engavetado por mais de dez anos 

O projeto da avenida Liberdade nasceu em 2012, ainda na gestão do governador Simão Jatene (PSDB). A proposta era abrir um corredor entre Marituba, município vizinho de Belém, e a avenida João Paulo II, na capital, facilitando o fluxo de veículos que congestionam as avenidas Almirante Barroso e Mário Covas e desafogando a BR-316, principal via de entrada e saída de Belém.

Mais de dez anos depois, a via reapareceu no discurso oficial do governo Helder Barbalho (MDB) como resposta a engarrafamentos crônicos na saída da capital pela BR-316. Em 2020, o projeto ganhou corpo nos estudos de mobilidade do governo estadual, mas só saiu do papel após a confirmação de Belém como sede da conferência mundial do clima.

Embora o governo estadual negue qualquer relação entre a obra e a COP30, o cronograma acelerado coincide com os preparativos para o evento, que ocorre a partir de novembro.

Enquanto isso, para a obra da avenida Liberdade, apesar da realização de audiências públicas, exigidas para o licenciamento ambiental, as lideranças do Quilombo do Abacatal afirmam que o governo não seguiu as recomendações apresentadas pelos moradores, como garantir que as obras de compensação pelos danos fossem entregues com mais agilidade. 

Isso porque, como medida de mitigação e compensação do projeto viário, nove obras foram previstas para a comunidade, mas apenas uma está em andamento: a construção de um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Os demais empreendimentos aprovados em audiência pública no quilombo incluem a pavimentação da estrada de acesso à comunidade, a construção de uma praça, uma quadra de esportes, um anfiteatro, um museu, além da reforma da portaria e da revitalização da sede da Associação Comunitária.

Segundo Melina, a obra da estrada de acesso à comunidade está prevista para iniciar somente em 2026. “As outras como praça, posto de saúde, museu, não têm nem previsão para começar. Só o CRAS que está sendo construído, mas a obra não avança. Falta material para continuar os trabalhos. Ou seja, a prioridade do governo é só a avenida Liberdade. As obras condicionantes e os direitos dos quilombolas parecem não ter nenhuma importância para eles”, ressalta.

Território de resistência 

O Quilombo do Abacatal abriga 160 famílias que vivem no território desde 1710. De acordo com os moradores, a comunidade tem origem nos antigos engenhos de cana-de-açúcar instalados próximos a Belém, ao longo dos rios Guamá, Bujaru, Acará e Moju, no nordeste do Pará.

Relatos orais indicam que o engenho do Uriboca, propriedade do conde Coma Mello, foi deixado como herança para três de suas filhas, as “três Marias”, fruto da relação do conde com a escravizada Olímpia. Os registros estão no livro “No caminho de pedras de Abacatal”, das professoras Rosa Acevedo e Edna Castro, da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Embora fossem herdeiras, as três filhas não tiveram acesso imediato ao território, que permaneceu em disputa judicial por quase três décadas. Somente em 1999 a comunidade teve suas terras regularizadas pelo Instituto de Terras do Pará (Iterpa).

Maria Santana da Costa, liderança comunitária do quilombo (Foto: Adison Ferreira/Carta Amazônia)

Liderança histórica da comunidade, Maria Santana da Costa lutou pelo reconhecimento e a titulação do Quilombo do Abacatal. Hoje, ela vê com preocupação as ações que ameaçam o território e o modo de vida da comunidade.

“Não é à toa que dizemos que o nosso território é de resistência. Primeiro lutamos pelo direito de existir, depois lutamos pelo direito à titulação do quilombo, agora estamos lutando pelo direito à sobrevivência aos diversos impactos que estão devastando a nossa comunidade.”

Santana afirma que o projeto da avenida Liberdade já causou inúmeros impactos no território como aumento do calor, assoreamento de igarapés e perda de áreas tradicionalmente utilizadas para extrativismo, o que tem levado animais a invadirem plantações e quintais em busca de alimento, devido à alteração de seus habitats.

Paulo Otas relembra que os impactos do projeto viário no território do Abacatal começaram antes mesmo do início da construção da obra. Em 2019, ele flagrou um funcionário de uma empresa de engenharia tentando retirar a terra da comunidade para análise sem autorização. 

“Era no período da tarde, estava no quintal da minha avó, quando vi que um homem, pilotando uma máquina tipo trator. Ele parou aqui na frente dizendo que iria retirar um aterro para fazer um estudo de um projeto, que ele não detalhou qual seria. Perguntei a ele quem tinha autorizado essa retirada de terra e ele não respondeu nada. Na hora, mandei ele ir embora do território. Essas empresas acham que em comunidade tradicional ninguém tem conhecimento dos seus direitos”, relembra.

Paulo Otas, morador do quilombo, denuncia a construção do túnel. A obra foi feita sem o consentimento da comunidade (Foto: Adison Ferreira/Carta Amazônia)

O músico conta que se não tivesse flagrado aquela cena, o homem provavelmente teria levado o material para estudo, sem falar com ninguém do território. “Só anos depois eu descobri que aquele episódio era o início dos estudos sobre a construção da avenida Liberdade, que já começou de forma desrespeitosa com a comunidade”, afirma. 

Governo afirma que o projeto viário teve participação ativa da população

Procurada para comentar sobre o atraso das obras condicionantes previstas para o quilombo,  a Secretaria de Estado de Obras Públicas (Seop) afirmou que as obras do Centro de Referência e Assistência Social (CRAS) na Comunidade Quilombola do Abacatal estão em andamento e que os outros projetos, como a construção de Unidade Básica de Saúde (UBS) e o espaço cultural e de lazer na comunidade, que incluem o museu e o anfiteatro, ainda estão em processo licitatório. 

Sobre o questionamento dos descumprimentos de acordos feitos em audiência pública, a Secretaria de Infraestrutura e Logística (Seinfra) esclarece que o projeto da avenida Liberdade foi amplamente debatido em audiências públicas, com a participação ativa da população, de lideranças locais e de representantes de comunidades tradicionais.

Segundo a nota, todos os estudos exigidos para o licenciamento foram elaborados, analisados e aprovados. “Ao todo, 57 condicionantes foram estabelecidas como medidas de mitigação e compensação, e estão sendo devidamente cumpridas. Entre elas, destacam-se a pavimentação de vias, a execução das etapas de terraplenagem, base e sub-base já em andamento”, destaca o documento. 

Sobre o túnel citado pelos moradores, a Seinfra esclarece que a obra é um viaduto com 4,50 metros de altura e 8,60 metros de largura, construído de acordo com o projeto aprovado nas audiências públicas e validado pelos órgãos competentes.

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Este conteúdo foi produzido com apoio do Edital de Bolsas de reportagens “COP30 em Belém”, destinado exclusivamente aos veículos da Rede Cidadã InfoAmazonia sediados em Belém e região metropolitana.