Levantamento mostra que a Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso não segue os seus próprios critérios no momento das análises de Cadastro Ambiental Rural (CAR) sobrepostos às terras indígenas no estado.

Um estudo elaborado pela pela Operação Amazônia Nativa (OPAN), em parceria com o Instituto Centro de Vida (ICV), revela que no estado do Mato Grosso mais de 1 milhão de hectares inscritos como propriedades ou posses rurais no Cadastro Ambiental Rural (CAR) incidem em terras indígenas. O levantamento, que originou o relatório técnico “O CAR Como Instrumento de Grilagem”, analisou os CARs no Sistema Mato-grossense de Cadastro Ambiental Rural (Simcar), da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA-MT) que estão sobrepostos a essas terras.

O documento mostra que, ao permitir que particulares registrem essas áreas, que são, conforme a Constituição Federal de 1988, destinadas aos povos indígenas para sua reprodução cultural, espiritual e física, a Secretaria de Meio Ambiente acaba favorecendo a prática de grilagem e contrariando o direito dessas populações.

“A partir dos dados levantados, conseguimos mostrar o quanto a SEMA-MT  não segue os seus próprios critérios no momento das análises de CAR sobrepostos às terras indígenas em MT. Além disso, também mostramos o quanto o critério que ela diz seguir está errado ao considerar apenas terras indígenas com portaria declaratória no momento de bloquear CAR sobrepostos à TIs”, declara Ricardo Carvalho, indigenista da OPAN e um dos autores do estudo. 

O CAR é um registro público eletrônico de âmbito nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais. Ele foi criado com a finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais referentes às Áreas de Preservação Permanente (APP), de uso restrito, de Reserva Legal, de remanescentes de florestas e demais formas de vegetação nativa e das áreas consolidadas. As informações compõem uma base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento ilegal.

Criado pelo Código Florestal em 2012 como ferramenta de regularização ambiental, ele não tem finalidade fundiária, mas a inscrição irregular em áreas consideradas como não cadastráveis, como as terras indígenas, abre caminho para promoção de danos ao meio ambiente, facilitando o acesso a recursos públicos e privados para promover atividades econômicas que podem causar impactos tanto às comunidades indígenas quanto ao meio ambiente. 

Em Mato Grosso, desde 2021 tramita no Ministério Público Federal (MPF) um Procedimento Preparatório instaurado a partir de estudo encaminhado pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (CCR) indicando o grande número de registros no CAR de imóveis rurais sobrepostos a territórios indígenas.

Desde então, a Procuradoria da República do Estado de Mato Grosso (PR-MT) tem expedido ofícios à SEMA-MT requisitando informações sobre o tratamento dado a tais sobreposições, obtendo como respostas que apenas em terras indígenas homologadas se cancelavam os pedidos de cadastro sobrepostos, e que era do interesse da Secretaria manter o cadastro ativo para viabilizar a fiscalização e responsabilização de eventuais infrações ambientais. Em Rondonópolis, porém, a mesma secretaria teria concordado em alterar o status dos pedidos de “ativo” para “sobrestado” em razão da sobreposição.

Após o procedimento do MPF passar a tramitar como Inquérito Civil, em agosto de 2022, foi expedida recomendação à SEMA-MT para a alteração de todos os registros de CAR sobrepostos a terras indígenas, independente da fase do procedimento demarcatório, para a condição de suspensos ou cancelados.

Porém, a secretaria alegou que cumpriria integralmente as condições do CAR dispostas no Decreto Estadual n° 1.031/2017, que define como terras indígenas somente as interditadas e declaradas, deixando assim, as que ainda não possuem portaria declaratória, em estudo ou delimitadas, disponíveis à especulação.

Tendo em vista o impasse, em março de 2023 o MPF ajuizou a Ação Civil Pública (ACP) nº 1007244-56.2023.4.01.3600 em desfavor do estado de Mato Grosso. Com a ação, o MPF buscou a concessão de tutela de urgência a fim de “proibir a emissão de CARs em terras indígenas delimitadas, declaradas, demarcadas fisicamente e interditadas”, e, no mérito, objetivava que o estado de Mato Grosso, por meio da SEMA, promovesse a alteração do status dos pedidos de CAR sobrepostos total ou parcialmente a terras indígenas, independente da fase do processo de demarcação, para a condição de sobrestados.

Em março deste ano, o governo fez uma alteração na forma de análise do CAR por meio do Decreto Estadual 780/2024, que passa a ser automatizada. No entanto, não houve nenhuma modificação em relação ao critério adotado pela SEMA-MT com relação aos cadastros sobrepostos a terras indígenas.

Para analista socioambiental do Instituto Centro de Vida (ICV), Júlia Mariano, a sobreposição de Cadastros Ambientais Rurais em terras indígenas não só compromete o direito originário dos povos aos seus territórios, mas também legitima o uso econômico dessas áreas por terceiros, podendo ameaçar o patrimônio cultural e ambiental dessas comunidades.

“Apesar da legislação determinar que os Cadastros Ambientais Rurais em terras indígenas devem ser indeferidos, nossos resultados mostram que na realidade não é bem assim. Muitos territórios indígenas ainda têm imóveis cadastrados e registros ativos, o que os deixa vulneráveis a atividades ilegais. Essa situação não só desrespeita a lei, mas também ameaça a integridade desses espaços e comunidades”, ressalta Júlia. 

Sobre o estudo 

Para identificar os CARs sobrepostos a terras indígenas de Mato Grosso, foram realizadas análises a partir de dados obtidos junto à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e à SEMA. Utilizando um Sistema de Informação Geográfica foi possível cruzar os polígonos das terras indígenas e dos imóveis rurais cadastrados no SIMCAR. Além disso, foram realizadas análises espaciais que tratam do dimensionamento das áreas sobrepostas às terras indígenas.

Conforme o relatório, nas terras indígenas em estudo e delimitadas, que representam 8% do número total de territórios em Mato Grosso, se concentram 49% da área de imóveis rurais sobrepostos.

Tabela: Imóveis rurais sobrepostos a terras indígenas | Fonte: relatório técnico OPAN 

Cerca de 82% dos cadastros em terras indígenas de Mato Grosso encontram-se ativos, ou seja, aguardam análise ou estão em alguma fase do processo de validação. Em contrapartida, apenas 13% deles foram cancelados e 5% indeferidos, o que equivale a uma área de pouco mais de 130 mil hectares. Esse cenário contraria a IN 02/2014 do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que afirma que a situação do CAR deve constar como pendente quando estiver em sobreposição com terras indígenas. 

“Em Mato Grosso, quase metade dos Cadastros Ambientais Rurais sobrepostos às Terras Indígenas são de grandes imóveis rurais, muitos deles voltados para o desenvolvimento de atividades agropecuárias. Essa situação não só ameaça a biodiversidade local como coloca em risco as comunidades indígenas que dependem dessas terras para sua subsistência e cultura”, disse Júlia. 

Tabela: Proporção de imóveis rurais sobrepostos a terras indígenas conforme seu tamanho | Fonte: relatório técnico OPAN 

Lançamento 

O lançamento do relatório será nesta quinta-feira (3), no canal do Youtube do Observa MT, e terá a participação de representantes da OPAN, ICV, Observa-MT e de instituições parceiras, como a Federação dos Povos Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). 

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Com informações da assessoria de comunicação da OPAN.

Foto: Marcos Vergueiro/Secom-MT