Um olho na economia, mas nenhum na preservação ambiental: especialistas apontam riscos ambientais de projetos como a BR-319, a Nova Ferroeste e o PL 151/2023

Júnior Parraga

Mayala Fernandes

Micael Olegário

Soraia Joffely

Vitória Gomes

O que é mais importante: desenvolver o país ou preservar o meio ambiente? A dicotomia que opõe o desenvolvimento da economia e a preservação ambiental está presente nas políticas do governo Lula, na mídia e na vida de diversas comunidades em diferentes locais do Brasil.

Um dos exemplos mais emblemáticos dessa discussão é a construção da BR-319, rodovia federal projetada para fazer a ligação entre as cidades de Manaus (AM) e Porto Velho (RO), com a proposta de integrar o restante do Brasil ao extremo Norte do país.

De acordo com o PL 4994/2023, a BR-319 seria uma “infraestrutura crítica, indispensável à segurança nacional”. O projeto tem autoria conjunta das bancadas do Amazonas e Rondônia na Câmara dos Deputados e, atualmente, aguarda votação no Senado Federal.

Em um contexto de mudanças climáticas, com impactos cada vez mais visíveis e frequentes na vida no planeta, o debate em torno da rodovia ganha novos contornos. Encontrar um equilíbrio entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental se torna crucial para o futuro da Amazônia e suas comunidades.

Nesta reportagem, produzida através do programa de jornalismo socioambiental da Escola Carta Amazônia, a discussão sobre a construção da BR-319 é apresentada através de diferentes depoimentos que mostram a atual situação do projeto. Além disso, dois outros exemplos de projetos de obras de infraestrutura mostram que a dicotomia desenvolvimento versus preservação não afeta apenas o norte do país.

Trecho da BR-319, projetada para ligar as cidades de Manaus (AM) e Porto Velho (RO), (Foto: Joel Silva)

BR-319: A rodovia federal não pavimentada que coloca em risco o equilíbrio ecológico da Amazônia

Em agosto de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) também abordou a questão da BR-319, reconhecendo os desafios ambientais associados à pavimentação da rodovia. Lula enfatizou a necessidade de garantir a preservação ambiental enquanto se promove o desenvolvimento regional.

Ele propôs a criação de um grupo especial para avaliar os impactos e elaborar um plano de ação que concilie o progresso com a conservação ambiental. O grupo foi criado oficialmente em novembro.

Um estudo do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), publicado em 2006, já afirmava que a reconstrução do empreendimento ameaça “o último grande bloco de Floresta Amazônica intocada”, assim, pondo em risco o equilíbrio climático global.

Para o coordenador executivo da Organização dos Povos Indígenas do Alto Madeira (Opiam), Nilcélio Jiahui, a reconstrução de 885 quilômetros da estrada em meio a uma área sensível de floresta nativa prejudica o andamento ecológico da região.

“Primeiro que vai mudar a característica socioambiental e cultura do local, afetando também o modo de vida sociocultural dos povos indígenas, havendo mais exploração territorial e, inclusive, aumentando o contato com indígenas isolados”, ressaltou o coordenador.

Morador do território Jiahui, em Humaitá, interior do Amazonas, Nilcélio define como “vislumbre” o movimento político dos últimos anos que tem levado governos a acenar para uma favorável repavimentação da rodovia.

A defesa do argumento de uma infraestrutura crítica une o atual presidente a Wilson Lima (União Brasil), governador do Amazonas, que vê a BR-319 como parte do direito de ir e vir dos cidadãos amazonenses.

Quando perguntado a respeito dos impactos ambientais, o governador destaca que os entraves para licenciamento ambiental são “superáveis”. Segundo declaração feita em recente entrevista coletiva, Wilson considera uma a criação de uma rodovia-parque como um dos caminhos para viabilização da obra.

Remídio Monai, empresário responsável por uma empresa de ônibus que opera na rota Porto Velho-Manaus, acredita firmemente que a pavimentação da BR-319 trará benefícios significativos para a região.

Em uma entrevista, Monai destacou que o asfaltamento da rodovia reduzirá o custo de vida na região, promovendo o turismo, o esporte e a interligação cultural não apenas dentro da Amazônia, mas também com países vizinhos, como Venezuela, Guiana, Peru e Bolívia.

Entretanto, durante os últimos sete anos, ainda não foi apresentado um Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental da região, já que a estrada, conforme o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), é “considerada de interesse social e segurança nacional”.

A ausência de relatórios e estudos aprofundados acerca do impacto socioambiental da rodovia é visto, de acordo com Nilcélio Jiahui, como um desinteresse do governo sobre a vivência e pertencimento dos indígenas daquela região.

“Nossa preocupação é grande, pois eles {governos} não levam em consideração nenhum instrumento dos povos originários e tradicionais. Inclusive os Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs), os protocolos de consulta e o relatório de zoneamento dos territórios”, explicou.

O empreendimento, ainda que visado pelo governo federal, continuou fora do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A saída da obra do programa ocorre, pois há risco de aumento do desmatamento e das queimadas na Amazônia, caso a obra avance. Além disso, o Governo Federal buscou esclarecer que, ao contrário da obra, somente os projetos e estudos de viabilidade estavam presentes no programa.

Junto ao projeto de pavimentação da BR-319, também há o custeio da obra que demandará, segundo estudos preliminares do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), cerca de R$ 2 bilhões.

“A possível pavimentação enfraquece a terra nos territórios indígenas, porque vai fazer o desvio de cursos d’ água, além de reduzir a vegetação, caça e pesca. Ela gera exploração e desvio ilegal de madeiras e minerais”, completou o coordenador da Opiam.

Como está a rodovia federal hoje?

Em 12 março deste ano, o superintendente regional do Dnit no Amazonas, Orlando Machado, esteve na Assembleia Legislativa amazonense (Aleam) para tratar da BR-319. Na ocasião, era esperado a apresentação do relatório do GT, mas ele informou que o documento permanece em discussão interna.

Dentro dessa perspectiva, espera-se a conclusão do relatório final do Ministério dos Transportes. O documento, finalizado em fevereiro, permanece sem data prévia para se tornar público.

Em entrevista à Carta Amazônia, o analista de sistemas, André Marsílio, contou que, embora seja época de chuva na região, a BR-319 está trafegável, pela primeira vez, entre os meses de março e abril.

O amazonense possui propriedade no município de Manaquiri, interior do estado, e precisa utilizar a estrada para chegar ao local que está localizado na margem da rodovia.

André Marsilio explica que é a primeira vez no inverno que a BR-319 está trafegável

Ainda segundo André Marsílio, a criação do GT feito pelo Governo Federal retardou o processo de reasfaltamento da rodovia, já que houve demora em elaborar estudos ambientais sobre a área de florestação que cerca a BR-319.

Nos últimos dias, mesmo com chuva, a rodovia ainda apresenta condições de trafegabilidade. Em registros recentes do dia 24 de março deste ano, é possível avistar carros de passeio transitando pela estrada. Entretanto, ainda que o tráfego atual na rodovia seja viável em dias de chuvas, é visível o enfileiramento de carros que param para realizar manutenção.

André Marsílio dirige entre o trecho do meio da BR-319

Mudança do clima pode elevar risco de construção de ferrovia no Paraná

Do outro lado do país, a Nova Ferroeste é uma iniciativa do governo do Paraná para a construção de uma ferrovia com 1.567 km de extensão, que pretende ligar por trilhos os estados do Mato Grosso do Sul, Paraná e Santa Catarina.

Também conhecido como Corredor Oeste de Exportação, a nova ferrovia pretende conectar Maracaju, no Mato Grosso do Sul ao Porto de Paranaguá, para realizar a exportação de grãos, óleos, combustíveis e produtos químicos.

A iniciativa consta no novo PAC do governo federal por ser considerada uma obra essencial para o desenvolvimento econômico do país. Porém, especialistas, ambientalistas e moradores dos trechos afetados pela construção acreditam que os potenciais impactos da Nova Ferroeste são extremamente danosos para a região.

No intervalo final, entre os municípios de São José dos Pinhais e Paranaguá, a obra faz um rasgo na Serra do Mar, região pertencente ao maior remanescente de vegetação nativa ainda existente em território paranaense.

A passagem constante de trens de carga nesta região ameaça a integridade das encostas, aumenta o risco de deslizamentos e, em casos de acidentes, a carga pode contaminar rios e solos, impactando a fauna, a flora e comunidades tradicionais que habitam a região.

Entenda mais sobre a construção da Nova Ferroeste e os impactos da obra no vídeo:

Reportagem em vídeo da Nova Ferroeste

Governo gaúcho sanciona “boiada” que põe meio ambiente em risco no RS

Área de preservação permanente em lago na cidade de Canoas (Foto: Divulgação/Secretaria de Meio Ambiente de Canoas)

Enquanto em outras regiões as rodovias e ferrovias despontam como as principais ameaças à biodiversidade, no Rio Grande do Sul o alerta está relacionado às águas. Nesta terça-feira, 9 de abril, o governador Eduardo Leite (PSDB) sancionou o PL 151/2023, projeto que abre a possibilidade para que sejam feitas “obras de infraestrutura de irrigação e de interesse social” em Áreas de Preservação Permanente (APPs). A medida tinha sido aprovada pela Assembleia Legislativa gaúcha em março.

Na prática, o texto altera o código ambiental para viabilizar a construção de açudes e barragens nas APPs, essenciais para a preservação dos recursos hídricos.

“As APPs são os nascedouros de água. Como pode ser razoável pensar em interferir nesse sistema natural complexo e já tão escasso para criar reservatórios artificiais?”, questiona nota divulgada pela Associação Gaúcha de Proteção do Ambiente Natural (Agapan) após a aprovação pelos parlamentares.

De acordo com a entidade, o projeto possui caráter antiecológico e representa uma legalização da destruição ambiental. “Qualquer impacto negativo nessas áreas de inestimável valor ecológico é sinônimo de aumento da degradação ambiental com sérios reflexos na crise climática”, continua a nota.

Presidente da Agapan e jornalista engajado com as questões ambientais, Heverton Lacerda aborda o contexto no qual a lei foi aprovada. Segundo ele, as áreas de preservação já são escassas no RS, justamente pelos impactos causados pela atividade humana, em especial a agropecuária e a silvicultura.

Entre 2022 e 2023, o RS enfrentou uma grave estiagem, agravado pelo fenômeno natural La Niña e pelas mudanças climáticas. Proposto pelo deputado estadual delegado Luciano Zucco (PL), e apoiado pelo atual presidente da Assembleia Adolfo Brito (PP), o projeto tem o objetivo contraditório de combater as estiagens que afetam o Estado, explorando os locais destinados a garantir a estabilidade hídrica.

“A área de preservação permanente, da forma natural como ela foi criada ao longo de milênios, ela, sim, protege a água”, explica o presidente da Agapan.

Lacerda problematiza os interesses que o projeto atende. “A pressão maior não é dos produtores familiares, nem da produção de alimentos. A gente sabe muito bem que essa pressão é dos grandes produtores de eucalipto e de soja transgênicos”.

Entre 1985 e 2022, por exemplo, o Pampa Sul-Americano (que ocupa 63% do território gaúcho e áreas na Argentina e Uruguai) perdeu 14,9% de sua vegetação nativa, enquanto isso a área do bioma destinada para a agropecuária e silvicultura cresceu 20,4%, segundo dados do MapBiomas Pampas.

Em setembro de 2023, uma frente fria atingiu o Rio Grande do Sul e deixou 52 mortos no Vale do Taquari. Especialistas locais apontaram, na época, o desmatamento de matas ciliares (que também são consideradas APPs pela legislação) como um dos elementos que agravaram o desastre climático, com a aprovação do PL, a proteção das matas ciliares fica ainda mais prejudicada. Segundo o presidente da Agapan, a entidade pretende recorrer ao Ministério Público para apontar a inconstitucionalidade do projeto de lei e pressionar pela sua revogação. O PL 151/2023, a BR-319 e a Nova Ferroeste não são os únicos projetos que acendem a discussão sobre desenvolvimento e preservação. Outros exemplos de destaque podem ser mencionados, como a construção da Ferrogrão e as atividades de mineração em Minas Gerais e em Maceió. Seja no caso do projeto para construção de barragens ou nos exemplos das rodovias e ferrovias, a oposição entre a economia e o meio ambiente compromete o debate e pode pôr em risco o futuro de diferentes regiões dos Brasis.

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Este conteúdo foi produzido por participantes da Escola Carta Amazônia de Jornalismo Socioambiental, iniciativa da agência de comunicação Carta Amazônia, em parceria com a Embaixada dos Estados Unidos, através do programa TechCamp, do Laboratório de Jornalismo Énois, para promover a capacitação profissional sobre a cobertura da pauta socioambiental.