Por Cecilia Amorim

A cidade que promove a maior manifestação católica do Brasil e uma das maiores festas religiosas do mundo é a mesma que realiza a manifestação LGBTQIA+ mais antiga do país.  A Festa da Chiquita, que há 46 anos celebra a diversidade de gêneros e de orientação sexual, na véspera do Círio de Nazaré, em Belém, surgiu antes mesmo da primeira parada LGBT do Brasil, em São Paulo. O evento, organizado pelo cantor Eloi Iglesias, mostra o quanto o movimento LGBT na Amazônia é pioneiro e resistente.  

“Ao mesmo tempo em que a festa é uma manifestação de fé da comunidade LGBTQIA+, também é um espaço para a comunidade expor seus sonhos e sentimentos para o mundo”, destaca Eloi.

A resistência da Festa da Chiquita também carrega a resiliência de um movimento que se reinventa na luta por reconhecimento, direitos e respeito em uma das regiões mais diversas culturalmente do Brasil. Enfrentando desafios como a violência, ausência de políticas públicas e isolamento geográfico, ativistas LGBT amazônicos têm criado redes de apoio e conscientização que celebram a diversidade e promovem cidadania. 

Coletivos como a Lesboamazonidas e o Miriã Mahsã de Indígenas LGBTQIA+ do Amazonas exemplificam a determinação de pessoas que, através de arte, política e educação, transformam a realidade local. A união, luta e existência  não apenas fortalecem a comunidade LGBT, mas também inspiram mudanças significativas na estrutura da sociedade amazônica. 

O Carta Amazônia conversou com algumas dessas pessoas. Conheça o Pedro Tukano, jornalista, indígena do Amazonas; Isaque Santiago, pai e jornalista de Boa Vista, Roclane Damasceno, mulher trans, bombeira militar de Belém, e Simara Esmael, ativista LGBT de Belém.  

Dialogos e intersecção entre identidade indígena e LGBTQIA+

Conheça Miriã Mahsã, coletivo  de Indígenas LGBTQIA+ 

Pedro Tukano de 26, é um jovem indígena do povo Yepá Mahsã, mais conhecido como Tukano, da região de São Gabriel da Cachoeira, no Território Indígena do Alto Rio Negro.  Ele conta que a percepção sobre sua sexualidade começou na adolescência e que sempre buscou não permitir que a culpa cristã afetasse sua identidade. Apesar de acreditar que todos da sua família e comunidade já suspeitavam de sua sexualidade por não performar o estereótipo masculino socialmente aceito, Pedro assumiu publicamente a sua orientação somente quando se mudou para Manaus, capital do Amazonas. Com isso, passou a sofrer uma dupla discriminação: por ser indigêna e LGBTQIA+. “As principais dificuldades são a falta de entendimento das pessoas sobre questões indígenas, a ponto de enfrentar situações racistas, e as homofobias internalizadas. Durante a faculdade de jornalismo em Manaus comecei a atuar dentro da comunicação indígena e em paralelo construir diálogos sobre gênero e sexualidade com o Coletivo Miriã Mahsã de Indígenas LGBTQIA+ do Amazonas. A partir disso, junto com outras juventudes, viemos construindo nossas trajetórias dentro do movimento indígena do Amazonas”.

Filho de uma família que participa ativamente da mobilização do movimento indígena, o ativismo fez parte de sua criação. O jovem Tukano conta que sempre foi aceito por sua família e que nunca precisou de fato “sair do armário” para eles. O fato de ter sido acolhido sem conflito o faz reconhecer que a sua história é exceção. Suas vivências contribuíram para que em 2021 fosse um dos idealizadores do Coletivo Miriã Mahsã de Indígenas LGBTQIA+ do Amazonas, com o intuito de construir diálogos sobre gênero e sexualidade na perspectiva indígena de Manaus.

Pedro Tukano é um idealizadores do Coletivo Miriã Mahsã (Foto: Jare Apinagé)

 “Aprendemos a partir de muitas vivências a dialogar nossas identidades (indígena e LGBTQIA+) onde um complementa o outro. Não são fatores que precisamos desmembrar.  Um complementa o outro a partir do momento que é preciso desconstruir um pensamento colonial sobre gênero e sexualidade. Para reafirmarmos que não somos uma invenção colonial, mas nossa existência e identidades já existiam há décadas e que, assim como outras questões indígenas, sofreram opressão e apagamento em nome da fé cristã”. 

Pedro finaliza a conversa afirmando a necessidade de mais diálogos. “Precisamos dialogar sobre o impacto na saúde, principalmente a mental, das pessoas indígenas LGBTQIA+ ao serem reprimidas e violadas dentro dos territórios e fora deles. Precisamos que a própria comunidade LGBTQIA+ esteja mais aberta para os diálogos que nós estamos construindo aqui”. 

Nunca é tarde para ser feliz

Saiba mais sobre a história da Roclane no Episódio 18 do Podcast Carta Amazônia: Os desafios das pessoas trans na Amazônia

Nascida em uma família evangélica, Roclane Damasceno desde a infância não se sentia bem com o corpo que via no espelho. Ela conta que muitas vezes orou perguntando a Deus o por que não ter nascido no corpo feminino.  Roclane passou pela infância, adolescência e boa parte da vida vida adulta reprimida, escondida dentro de uma pele que não reconhecia. Vivendo uma sexualidade de forma automática . “A Roclane criança era uma menina tímida com poucos amigos,  pois vivia triste por não viver da maneira como se sentia, inclusive fez várias vezes a pergunta pra Deus, porque ela não tinha nascido mulher. Era bastante ruim. Vivi até os 39 anos em um corpo que não me representava, porque me olhava no  espelho e não reconhecia. É difícil você querer vestir uma roupa feminina e não poder,  Era difícil você querer namorar com homens e não poder”.

Aos 33 assumiu ser gay, mas ainda não era isso a sua verdade. Aos 39 anos, com uma carreira consolidada no Corpo de Bombeiro Militar do Estado do Pará, ela conheceu a história de uma outra mulher que havia passado pela transição dentro da corporação e não tinha perdido seu posto. O grande desafio era a aceitação da família. “O maior desafio foi me assumir na minha família,  pois como são evangélicos,  eles não aceitavam. Principalmente minha mãe,  que me renegou como filha várias vezes. Foi como havia falado a família ser evangélica e ter um pensamento conservado. O maior desafio foi me vestir como mulher pela primeira vez, porque pra mim todos na rua ficavam me olhando. O start foi uma oportunidade que tive no meu trabalho de me assumir mulher trans através da justiça,  e isso foi algo que me impulsionou abraçar a oportunidade,  pois não iria perder meu emprego por me assumir”, conta a bombeira.

Roclane Damasceno atua há mais de 10 anos no Corpo de Bombeiros do Pará (Foto: Acervo pessoal)

A falta de apoio familiar foi compensada pela aceitação e acolhimento da maioria dos amigos, muitos inclusive da corporação. A independência financeira, associada à referência que teve da outra pessoa que passou pelo processo sem perder seus direitos, foi a força motriz para que Roclane iniciar o seu próprio processo.  Ela acredita que dar visibilidade para pessoas trans em profissões tradicionalmente machistas e lgbtfóbicas, como a carreira militar, é uma forma de contribuir na luta pela quebra de estereótipos e preconceitos.  “As instituições militares são ambientes conservadores e aplicar novos conceitos de comportamento é algo muito difícil de acostumar para os conservadores” afirma. Segundo Roclane,  as políticas públicas de garantias de direitos à comunidade LGBTQIA+  são importantes para que as pessoas sintam-se livres para serem quem realmente são. “Nunca desistam dos seus sonhos e tentem realizar mesmo que pareça tarde”, conclui.

Luta e resistência na Amazônia contra a lesbofobia

Conheça a Coletiva LesboAmazônidas

Criada pela avó evangélica na periferia de Belém, Simara Esmael cresceu aprendendo que Deus havia criado homem e mulher para formar família e qualquer outra forma de amor era errada. Ainda na pré- adolescência ela percebeu que não se encaixava naquilo que era pregado como certo, o que a enchia de vergonha e repulsa. Por isso, ela afirma que buscou várias formas de mudar quem era. “Tive relações héteros, me obriguei a ser desejável para os homens e foi uma caminhada de negação, até porque eu também participava da igreja, fazia retiros espirituais e até mesmo fiz um trabalho para “corrigir” o que eu gostava. Foi difícil e longo”. A não aceitação, segundo a jovem, foi facilitada pela falta de representatividade lésbica, seja na mídia ou no seu entorno enquanto crescia. Somente no início da fase adulta conseguiu se libertar e viver plenamente.

Aos 28 anos, hoje Simara é umbandista, ativista lgbt e fundadora da Coletiva LesboAmazônidas. A Coletiva surgiu pela falta de espaços na cidade que fosse pensado para articular políticas voltadas às lésbicas, para desenvolver o reconhecimento e promover o acolhimento para essas mulheres. A jovem conta um pouco sobre as dificuldades que enfrentou até conseguir se enxergar com orgulho. “A maior dificuldade que enfrentei foi em relação a mim mesma, e depois com pessoas da família que não são do meu núcleo familiar (mãe, irmã, avó) mas que eram importantes pra mim. Até hoje ainda me deparo com algumas situações chatas mas já não me toca como antigamente” , afirma

Simara é fundadora da Coletiva LesboAmazonidas (Foto: Acervo pessoal)

O momento mais doloroso de sua vida foi ter sido vítima de um estupro corretivo. “O pior foi ter passado por um estupro corretivo e tentar sobreviver a isso. Foi dilacerante, morri em vida. Mas estamos aqui!”. Estupro corretivo é um tipo de violência infrigido a pessoas lgbts com o intuito de forçá-los a aceitar a heteronormatividade, de “corrigir” a orientação sexual ou identidade de gênero da pessoa. As principais vítimas são mulheres lésbicas, pessoas trans e homens gays. 

Um estudo do  Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2023 afirma que o Brasil registra cerca de 822 mil casos por ano. A Coletiva tem um projeto voltado exclusivamente ao acolhimento a lésbicas sobreviventes deste tipo de violência.

A Coletiva LesboAmazônidas nasceu para ser um espaço de acolhimento a mulheres lésbicas amazônicas, entendo que as vivências amazônidas são diferentes e precisam ser consideradas ao pensar a forma de acolher e lutar por essas mulheres. Esmael denuncia que há um certo apagamento das lutas e identidades lésbicas e lgbts da Amazônia. “Há muita negligência e apagamento. A violência que passamos não é a mesma, nem de longe, da violência cometida no Sul/Sudeste/Centro do País. E isso, além de não ser discutido abertamente, não é reconhecido. Temos muita dificuldade para sermos vistas e termos nossas pautas priorizadas. A violência na Amazônia precisa ser analisada a partir do território e contexto de colonização para que possamos avançar”, afirma

Ação da Coletiva Coletiva LesboAmazonidas em Belém (Foto: Divulgação/Coletiva LesboAmazonidas )

Desde 2016 como ativista lésbica, Simara avalia que uma das principais dificuldades do movimento na região se deve a grande dimensão territorial. “Chegam diversas demandas pra gente de algumas regiões, e temos dificuldade de acessar fisicamente. Em Roraima, por exemplo, já tive acesso a diversas situações lesbofóbicas, pois lá a questão da lgbtfobia é tão alarmante que até mesmo espaços para essa população são negados, assim como grupos formados politicamente simplesmente porque há um medo e uma constante invisibilização”, ressalta a ativista, mas o preço médio da passagem aérea pra lá é mais cara do para Brasília ou estados do Nordeste.

Rompendo com a religiosidade para ser livre

A história do jornalista Isaque Santiago aconteceu na cidade de Boa Vista – Roraima, mas poderia ter sido em qualquer outro lugar. Nascido em uma família evangélica, ele cresceu escutando sermões, pregações e ensinamentos que demonizava a homossexualidade. Aos 13 anos já tinha consciência sobre a sua sexualidade e era duramente reprimido pela família. “Durante toda a minha vida, escutei meus pais me repreendendo, dizendo para eu agir como homem, fazer coisas de homem. Isso ficou gravado na minha mente, e eu reprimi minha sexualidade por muito tempo”, conta.

Na intenção de se esconder e viver o que lhe passavam como “normal” e “aceitável”, Isaque namorou várias garotas na igreja, aos 22 anos se casou e foi pai pela primeira vez. Aos 24 veio a segunda filha. Após cinco anos de casamento, a verdade cuidadosamente escondida começou a incomodar. “Perto de completar cinco anos de casamento, comecei a assistir e consumir conteúdos com personagens LGBT que viviam suas vidas plenamente felizes e normais em filmes e séries. Isso despertou em mim o desejo de viver aquilo também, de sair do armário. Conversei com a mãe das minhas filhas e disse que talvez eu fosse bissexual. Ela foi super parceira, segurou minha mão, e permanecemos casados por mais um ano após essa conversa”, conta Isaque.

Ao lado das duas filhas, Isaque conta que a sua maior preocupação é que elas sofram algum tipo de discriminação devido a sua orientação sexual (Foto: Acervo pessoal)

O casamento acabou quando ele teve sua primeira experiência com um homem e contou para a companheira.  Os dois juntos contaram aos pais de Santiago o motivo da separação. Apesar do choque, o acolheram quando precisou voltar para a casa em que cresceu. Contudo, a homossexualidade do filho, ou relacionamentos são assuntos não pautados pelos pais. 

Isaque conta que chegou a escutar de familiares que deveria continuar no armário “pelo bem das suas filhas”. A filha de nove anos sabe da sexualidade do pai, e dela veio o principal acolhimento. “Ela disse: “Pai, eu te amo do mesmo jeito, não faz diferença para mim”, conta o jornalista.  A principal preocupação dele hoje é que as filhas sofram algum tipo de discriminação por ter um pai assumidadamente gay. Por isso, a criação delas visa também prepará-las para reagirem a essas possibilidades. Nesta tarefa ele tem a mãe das meninas, hoje uma grande amiga, como a principal aliada. 

“Nem todo mundo tem a sorte de contar com o apoio familiar. Eu mesmo não tenho esse apoio em relação a ser parte da comunidade LGBT+ até hoje. Convivo com meus pais, mas não tocamos no assunto. Encontrei esse apoio com amigos, mas não no ambiente caseiro, com exceção das minhas irmãs. Nos primeiros dias, semanas e meses, não é nada fácil, mas uma hora as coisas se estabilizam e você pode viver plenamente como quem você é de verdade” finaliza Isaque.

Em todas essas histórias, relatos de resistências e resiliências fortalecem a celebração da diversidade. Além da superação e do orgulho de ser quem são, Pedro, Isaque, Roclane e Simara também compartilham em comum a fúria e a beleza de um movimento potente, cheio de força e acolhimento e que ajuda a tornar a Amazônia um local mais inclusivo, diverso e que respeite a população LGBTQIA+.