OPINIÃO

Por Ismael Machado

Quando, em 2022, a obra Noites Alienígenas fez história no 50° Festival de Gramado ao receber cinco prêmios, incluindo Melhor Filme Brasileiro, Melhor Ator para Gabriel Knoxx, Melhor Ator Coadjuvante para Chico Diaz, Melhor Atriz Coadjuvante para Joana Gatis e o prêmio da crítica, além de receber uma menção honrosa pela atuação de Adanilo, o que estava – e está- em pauta, era uma discussão sobre o protagonismo amazônico na e fora das telas audiovisuais. Um oportuno debate sobre inclusão na tomada de decisões e na possibilidade de produtoras locais nortistas (e outras fora do chamado eixo Rio-São Paulo) contarem suas próprias histórias.

E é como se justamente ‘Noites Alienígenas’ comprovasse essa necessidade. O longa acreano se impõe na cinematografia contemporânea brasileira sem pedir maiores licenças. Escolhe contar sua história a partir de um ponto de vista peculiar. Que não deveria ser considerado peculiar, pois era apenas um olhar local. De quem pisa aquele solo diariamente.

Noites Alienígenas é um exemplo, mas não é algo isolado. Não é ‘um raio no céu azul’, parafraseando um grande pensador da esquerda mundial. Ele é fruto de uma política de descentralização e regionalização de recursos que tem galgado espaço no setor cultural brasileiro. Nos últimos anos, o setor do audiovisual foi um dos poucos setores nacionais a se destacar na economia brasileira. Gerou mais emprego e renda que muitos setores considerados menina dos olhos de qualquer governo, como o automobilístico ou o farmacêutico, por exemplo. Os recursos foram bem distribuídos por todo o território nacional.

E isso inclui a Amazônia.

Ao longo das últimas décadas a Amazônia, quando tratada pela mídia do eixo sul/sudeste, foi invariavelmente tratada como uma ‘terra sem lei’ ou um ‘exótico lugar de números grandiloquentes’. Uma região que abriga riqueza mineral incalculável e a maior floresta tropical do mundo. É formada por um território extenso e único por causa da variedade impressionante da flora e fauna, cada vez mais ameaçada. Abrange nove países, sendo o Brasil responsável por 60% da área total. Nela caberiam 14 Alemanhas ou 20 Inglaterras. Não é exagero dizer que sua marca natural é tão ou mais famosa do que a da Coca-Cola.

 Considerada como uma das últimas fronteiras florestais do mundo, a Amazônia abriga contradições que fazem com que seu entendimento, ou pelo menos, tentativa de compreensão, passe ao largo de um discurso produzido pelos atores da própria região, apresentando-se como um discurso colonial que apresenta o colonizado estereotipado, num sistema que acaba se tornando crucial para o exercício do poder.

Ao longo dos anos a Amazônia tem sido vista ora como um obstáculo ao crescimento da ‘civilização’, ora como impedimento ao desenvolvimento industrial, seja ele qual for. Em outros momentos, por deter uma das mais importantes reservas florestais do mundo, é entendida como um santuário a ser preservado. Em nenhum desses aspectos, a voz amazônica é ouvida.

Num país também constituído por imensa dimensão territorial, não é difícil auferir que nele convivem variadas e ricas formas de expressão cultural. E que seria desejável – e esperado- que essa diversidade fosse contemplada de forma igualitária pelas políticas culturais do Brasil. Se há vários brasis coabitando o mesmo espaço geográfico, logicamente eles deveriam ter possibilidades de expressão iguais.

 Essa obviedade não costuma fazer parte das políticas públicas, no entanto. Principalmente quando o tema é Amazônia. A região Norte costuma ser tratada de forma periférica. Seus hábitos, sua cultura, sua arte, literatura, música etc, costumam ser rotuladas como ‘regionalistas’. Aliás, quase toda a cultura produzida no Brasil fora de um suposto eixo Rio-São Paulo é tratada como ‘regional’.

Em certa medida, essa assimetria foi encurtada quando Gilberto Gil assumiu o Ministério da Cultura entre 2003 e 2008, na primeira gestão Lula. Gil foi responsável pela implementação de políticas públicas para a promoção da diversidade artística, cultural e étnica, como os Pontos de Cultura, por exemplo. E iniciou-se uma salutar discussão sobre a descentralização de recursos públicos para a cultura.

A ideia foi ampliada na Agência Nacional de Cinema (Ancine) e Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) sob a gestão Manoel Rangel, do PCdoB. Com isso, os editais para o audiovisual obrigatoriamente passaram a ter cotas de indução regional. Ainda assim com assimetrias, mas pelo menos já um caminho a ser trilhado.

A Região Norte foi misturada à Região Nordeste e ao Centro-Oeste. Com direcionamento de 30% dos recursos em cada edital (como piso, não como teto, que fique claro) essa cota, ainda assim possibilitou um aquecimento na produção audiovisual nortista. De 2002 a 2022, apenas para ficarmos nesses vinte anos, são incontáveis as séries, filmes, programas, webseries, clipes musicais, produzidos na região. Um mercado de profissionais cada vez mais capacitados começou a se formar. Do Acre ao Pará, do Amapá a Rondônia, do Amazonas a Roraima. As vozes amazônicas começaram a ser ouvidas, contando suas próprias histórias.

Não sem ruído.

Ao longo desses anos, vozes insatisfeitas reclamaram (ainda que nos bastidores, muitas vezes) contra essa destinação de recursos descentralizados. Os argumentos variavam: desde a ‘fragilidade técnica’ dos produtores locais até a ‘inexperiência em lidar com grandes recursos’, várias eram as justificativas pífias para o combate à essa democratização cultural.

Obviamente a Região Norte era um dos alvos principais. Se a Amazônia sempre foi tratada como espaço a ser colonizado, não seria diferente num tema como o da cultura. Ainda mais audiovisual.

Em 2018, com a assunção de Temer, logo após o golpe contra Dilma Roussef e mais ainda sob Bolsonaro, o fosso entre a Amazônia e o resto do país só se aprofundou. O modelo que se adotou, excludente por natureza, soou como mais um indicativo da prática política onde o setor audiovisual brasileiro se alinha a uma concepção neoliberal de ver, pensar e refletir a sociedade num país desigual e injusto. Privilegiou-se, novamente, as grandes produtoras de São Paulo e Rio de Janeiro. A mesma lógica social brasileira (monoculturas, latifúndios, elitização da riqueza, concentração de renda, desigualdade na distribuição de renda, privatizações, submissão ao deus mercado, unificação de pensamento etc) seria estendida ao setor audiovisual.

É fato que a descentralização e a regionalização das produções incomodariam grandes produtoras dos eixos dos estados mais centrais politicamente do Brasil (sim, leiamos São Paulo, Rio de Janeiro etc). Nos últimos anos, bons projetos desenvolvidos por produtoras fora desse eixo galgaram espaços, dividiram recursos, espalharam olhares e começaram a ser mais e mais competitivas. Exemplos não faltam. Da robusta produção pernambucana às ‘periféricas’ obras da mineira Filmes de Plástico, o que se viu foi um país sob novos olhares.

É claro que isso uma hora seria bombardeado. É como se parte do mercado audiovisual exclamasse: ‘Onde já se viu pequenos querendo a mesma fatia que uma elite? Ponham-se no seu lugar, periféricos’.

Durante toda a gestão Bolsonaro a Cultura foi um dos principais alvos dos ataques do Governo. A intenção era perversamente sufocar esse setor. No caso do audiovisual, foram anos onde a Ancine, sob a presidência de Alex Braga, se omitiu de suas funções democráticas. Asfixiado, o setor mal conseguiu respirar. Curiosamente, as grandes produtoras conseguiram se safar, tanto que um deslumbrado Fernando Meirelles chegou a afirmar- em total descompasso com o que vivia o resto do setor no Brasil- que aquele era um dos melhores momentos para o audiovisual, enquanto seu filho dirigia, com verbas robustas, uma série de qualidade discutível.

Obviamente são declarações que não surpreendem. É a lógica neoliberal funcionando mais uma vez.

Forçado – até por vias judiciais- o governo federal precisou lançar mão de recursos represados via editais. Um deles, o de Novos Realizadores (com regras confusas, diga-se) escancarou de vez a ideia sobre Amazônia. Nenhum projeto aprovado. Sequer um mísero projeto foi considerado digno de ser selecionado no edital. Do estranhamento ao choque, do choque à revolta. Da revolta à mobilização. Até a ministra da Cultura Margareth Menezes, precisou entrar em cena para cobrar de Alex Braga uma reparação a esse escancarado apagamento. Deu certo. Um novo arranjo foi feito e produções nortistas puderam ser contempladas. Enquanto autor desse artigo, senti isso na prática. Pude filmar meu primeiro longa de ficção: Flashdance TF, rodado em grande parte na ‘periferia’ de Belém com ‘não-atores’ e grande parte da equipe técnica também oriunda de bairros ‘periféricos’.

É necessário que tenhamos nomes amazônicos identificados com as reivindicações que o audiovisual e a cultura em geral da Amazônia clamam. Talvez assim, a região possa ser vista como algo além de um quintal do colonizador. Essa é uma reivindicação para ontem. Para já. Se a Amazônia está no centro das discussões do mundo, precisa ter em todas as instâncias transversais, nomes que a representem de fato. Qualquer discussão sobre política cultural que não inicie com esse tema, está fadada a ser apenas um acessório. Nada mais.

Há uma série de profissionais Brasil afora contando suas histórias na tela. O país audiovisual não tem apenas temas como polícia e tráfico no morro, comédias ipanemescas ou tentativas de copiar blockbusters na Avenida Paulista. Há mais, muito mais. Parafraseando o título de uma série documental dirigida por Fernando Segtowick, prestem atenção aos ‘olhares do Norte’.

O modelo defendido por entidades que representam grandes produtoras do chamado eixo Rio-São Paulo é excludente por natureza, é mais um indicativo da prática política onde o setor audiovisual brasileiro se alinha a uma concepção neoliberal de ver, pensar e refletir a sociedade num país desigual e injusto.

Os sentidos mais atentos não se enganam. Há um pouco mais no ar que a poluição da atmosfera paulistana. No fundo o que se parece querer é a substituição da atual ministra da Cultura Margareth Menezes por alguém mais ‘sensível ao que postulam os críticos de cotas regionais’.

No último mês duas cartas de entidades ligadas ao audiovisual foram lançadas ao Brasil. Uma, a que representa grandes produtoras, chegou a insinuar, em trecho que vazou e depois seria suprimido na redação final, que não se poderia dar a quem não tem experiência recursos para se fazer cinema (ou séries). ‘Não se dá um avião para um piloto sem experiência’, parecia dizer um trecho espantoso da missiva. Haja preconceito.

Uma outra carta, assinada por entidades que representam produtoras fora do ‘eixo’, defende justamente essa democrática divisão de recursos.

Na primeira, o que se quer é a manutenção de um status quo. Na segunda, a possibilidade de vermos crescer produtoras audiovisuais de forma mais horizontalizada. O país precisa disso. Na teoria todos concordam. Na prática o buraco é sempre mais embaixo.

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Foto de capa: Divulgação/Vitrine Filmes – Noites Alienígenas

Ismael Machado é cineasta, escritor e jornalista.