Por Julie Pereira

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) foi alvo de ataques nas redes sociais após resgatar uma capivara do convívio doméstico com o estudante de agronomia e influenciador digital Agenor Tupinambá, no município de Autazes, interior do Amazonas. O caso teve grande repercussão, mas ao invés de provocar discussões sobre criação de animais silvestres como pets, e até sobre a importância do papel do Ibama em situações como essas, foi desvirtuado e usado pela extrema direita como ardil para pautas deste espectro político.

Perfis de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro usaram a discussão sobre o resgate do animal para engajar conteúdo contra o PL das Fake News  – O Projeto de Lei 2630 que propõe regulamentação para empresas que administram redes sociais usadas no Brasil. O projeto ainda não foi votado e segue tramitando na Câmara dos Deputados.. A Rede Cidadã InfoAmazonia encomendou análise que realizou coleta de dados entre os dias 9 de abril e 8 de maio e constatou que os perfis alcançaram mais de 1,2 milhão de contas nesse período, usando a pauta ambiental para viralizar. Os perfis de sites que compartilham desinformação também foram registrados como sendo de usuários que mais falaram sobre o caso da capivara.

Ao repercutir o assunto da capivara Filó, os perfis aproveitavam para levantar bandeira de outros temas como o PL das Fake News, ataques ao governo federal e para enaltecer o ex- presidente Jair Bolsonaro.

“Podemos destacar como foram personalidades e lideranças da extrema direita brasileira que dirigiram a conversa cooptando a pauta do influenciador para fazer críticas político-eleitorais, usando inclusive estratégias como sequestro de pauta para amplificar outros conteúdos”, explica Giulia Araújo, analista de dados e pesquisadora independente em desinformação socioambiental. Os dados que ela levantou foram exclusivos para a InfoAmazonia, obtidos por meio de plataformas digitais de monitoramento e escuta social sobre temáticas socioambientais no Brasil.

Em uma das postagens, por exemplo, o autor compartilhou o resultado de uma votação pela urgência do PL, com o placar mostrando que quem votou contra seria “a favor da liberdade” e quem votou sim, pela urgência, seria “a favor da censura”, na legenda da imagem, o autor usou as palavras “Filó”, “Capivara” e “Ibama” para chamar a atenção e conseguir maior alcance. 

Em outro perfil, o autor passou a usar a palavra “capivara” em vários contextos, também para engajar seu conteúdo que também fazia ataques ao governo federal. Esse sequestro de pautas ocorre quando um influenciador ou grupo de pessoas utiliza de um assunto que está sendo falado na internet para levantar outros temas. 

“Eles fazem o uso indevido de hashtags populares para distribuir conteúdos falsos, indesejados, spam ou não relacionados, explorando a popularidade da hashtag para aumentar o alcance dos seus conteúdos”, explica Giulia. 

Fake News e animais em cativeiros

Os perfis das páginas Choquei e PopTime no Twitter também foram registrados como sendo os maiores difusores de conteúdo sobre o caso da capivara. De acordo com o levantamento, as páginas compartilharam textos, fotos e vídeos com informações rasas sobre o tema e tiveram milhares de visualizações. Para Giulia, os registros mostram a importância do jornalismo profissional, que não apenas divulga uma informação, mas checa, contextualiza e traz especialistas.

Neste ponto, o levantamento mostra que as páginas foram responsáveis por aumentar a popularidade da deputada estadual do Amazonas, Joana D’arc (PSD-AM). Joana é conhecida pela defesa dos direitos dos animais, principalmente domésticos. No caso da capivara, D’arc apoiou que a capivara continuasse em cativeiro, sendo criada pelo estudante Agenor Tupinambá. No dia 30 de abril, ela foi pessoalmente até o Centros de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) do Ibama no Amazonas, invadiu o local e exigiu que a capivara fosse devolvida ao estudante. O Ibama é o responsável pelo controle de animais silvestres, espécies exóticas e importação e exportação de fauna silvestre no Brasil.

Filó vive com Agenor em Autazes, município da Região Metropolitana de Manaus (Foto: Reprodução/Redes sociais)

As páginas compartilharam dezenas de conteúdos sobre D’arc. De acordo com Giulia, a estrutura usada por essas páginas segue o formato de tweets curtos, com imagens e títulos atrativos, pouco aprofundamento, diversidade de assuntos abordados, cobertura em tempo real e falta de fact-checking (checagem dos fatos). 

“São portais de entretenimento que abordam diversos assuntos ao mesmo tempo, muitas vezes sem contar com profissionais preparados para abordar os casos de forma profunda, gerando conteúdo desinformativo e amplificando narrativas perigosas. Neste caso, esses portais foram cruciais para aumentar a popularidade da deputada Joana D’arc e, consequentemente, dos ataques ao Ibama ao publicar vídeos da deputada,  divulgando conteúdos enganosos e amplificando uma narrativa de que o influenciador estaria sendo injustiçado”, explica Giulia. 

O ambientalista Carlos Durigan, diretor da WCS Brasil, observa que a comoção em torno dos assuntos envolvendo a vida dos animais silvestres está crescendo e é necessário cuidado e informação de qualidade para acompanhar este movimento.

“É um movimento que vem crescendo e acaba vindo de uma forma distorcida. Ao invés de trazer um movimento positivo, trouxe um movimento muito negativo. Esses ataques ao Ibama acabam levando a uma construção de narrativa falsa. Ao mesmo tempo, traz à tona a necessidade de um debate mais amplo, mais positivo do que nós temos hoje”, afirma.

Ataques ao Ibama

A Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (Ascema) afirma que os ataques enfrentados pelo Ibama fragilizam a atuação do órgão no combate a outros crimes ambientais. “Infelizmente quando se descredibiliza um órgão em seu cumprimento da legislação vigente, você enfraquece qualquer outra iniciativa de combate aos crimes ambientais. Grileiros, mineradores, traficantes entendem que a punição de seus crimes deve ser flexibilizada”, diz a associação. 

A associação também afirmou que o compartilhamento de conteúdos desinformativos afetam as denúncias que chegam ao órgão. “A veiculação de informações erradas, que confundem a população, pode levar a um desencorajamento de denúncias, fazendo com que o órgão perca um grande aliado na proteção ao meio ambiente, que é a população”, conta. 

Para a ex-presidente do Ibama, Suely Araújo, que chefiou o órgão no governo de Michel Temer, o caso foi usado de forma política. “Está havendo uso político  do caso, promovido por pessoas que querem enfraquecer o Ibama. Essas pessoas têm de ser ignoradas. O Ibama não tem a opção de descumprir a lei. Mas o ocorrido mostra a necessidade de o governo, nos três níveis da federação, trabalhar mais com educação ambiental. Rigor na aplicação da lei e fomento da educação ambiental são ferramentas que se somam”, disse. 

Em outubro do ano passado, reportagem da InfoAmazonia mostrou que apenas 41% do orçamento para fiscalização no Ibama foi executado em 2021, um contraste grande do uso da verba antes do governo Bolsonaro, que variou de 86% a 92%. No ano de 2021 o governo também deixou de usar 30% dos recursos destinados à prevenção e controle de incêndios florestais.

Suely Araújo, avalia que o órgão precisa de apoio técnico. “É urgente o reforço em termos de pessoal, o que demanda a realização de concurso público. A autarquia já teve cerca de 1.500 fiscais, hoje são 700 e apenas metade deles têm condições de ir à Amazônia. Na verdade, há necessidade de analistas de nível superior para trabalhar em todas as áreas da autarquia, não apenas na fiscalização”, explica. 

Para a Ascema, é necessário investir também nos órgãos de comunicação e na contratação de novos analistas. “Acreditamos que tais investimentos devem ser intensificados, juntamente com a contratação de novos analistas ambientais e médicos veterinários, para qualificar ainda mais esse trabalho. Tal incremento nas equipes especializadas, poderá dinamizar ainda mais o cadastramento e estruturação das Áreas de Soltura de Animais Silvestres (ASAS), que são a última etapa no processo de reabilitação e aclimatação dos animais”, disse a associação.

Sem exceção

No Brasil, é proibido apanhar, coletar, matar, perseguir ou caçar animais silvestres sem permissão do Ibama. Agenor registrava o cotidiano de sua vida com a capivara Filó e publicava nas redes sociais, conseguindo visibilidade e alcance em seu perfil. Utilizar a imagem dos animais silvestres também é proibido pela legislação ambiental.

Em Manaus, onde fica localizada a sede da superintendência do Ibama no Amazonas, uma manifestação ocorreu para que a capivara fosse entregue a Agenor, o que de fato ocorreu após decisão judicial. 

O Ibama é formalmente responsável por receber e investigar o tráfico de animais silvestres e mantém 24 Cetas no país, que recebem animais apreendidos pelos órgãos de controle. O Ibama desenvolve um trabalho de reabilitação desses animais, com a soltura deles em habitat natural. 

O caso da capivara Filó é mais delicado, porque a espécie dela convive em grupo. Esses grupos apenas aceitam novas companhias quando elas ainda são filhotes, que é o caso da Filó.

“As capivaras têm comportamento gregário e a reintegração delas na natureza deve ser feita com muito cuidado, de forma que se permita observar e monitorar a integração com os grupos de vida livre. Há também a possibilidade de formar um grupo em cativeiro, com outras capivaras, que dão entrada nas unidades e, posteriormente, soltar o grupo formado”, explica a Ascema.

Capivaras não são animais de estimação e necessitam de vida livre, como animais selvagens que são, na natureza (Foto: ICMBio/Arquivo)

O ambientalista Carlos Durigan alerta, ainda, para a possibilidade de transmissão de doenças entre a capivara e animais domésticos e, consequentemente, para seres humanos. “ A capivara é um grande risco para a saúde humana. Em algumas regiões já é uma causa de grande preocupação. Só o fato dela estar convivendo com animais domésticos em fazendas, em sítios, esse risco de zoonose acaba se transformando numa realidade. A capivara já se transformou num animal que é tido como reservatório de diversas doenças, inclusive a temida febre maculosa que é uma doença que pode levar a óbito e é transmitida, também, por animais domésticos que também são reservatórios”, explica. 

O estudante Agenor Tupinambá foi multado em R$ 17 mil. Além de manter a capivara em cativeiro, o Ibama também encontrou outros animais da residência do estudante, como um papagaio, cobra e aranhas. Ele também foi autuado pela morte de uma preguiça-real. 

Uma decisão da Justiça Federal garantiu a Agenor a posse da capivara até a conclusão final do processo. Com isso, o Ibama foi obrigado a devolver o animal para o estudante.

“Com base no argumento da suposta cautela visando a preservação da integridade de um ou outro exemplar da fauna silvestre, membros do poder judiciário comprometem uma infinidade de populações de animais, ao transmitir a falsa mensagem de que os órgãos ambientais não são capazes de cuidar dos animais que recebem, fundamentados em laudos duvidosos”, diz a Ascema. 

Para Durigan, a Justiça precisa escutar o Ibama e confiar na avaliação do órgão competente. “Eu acho que faltou ao judiciário, que emitiu essa decisão, ouvir o Ibama. Foi uma decisão tomada por um juiz de plantão e com elementos trazidos apenas pela parte autuada. A situação encontrada no sítio do Agenor não é a situação que era veiculada nas mídias. Então eu acho que é um debate que ainda deve acontecer sobre a manutenção dessa situação e com novos elementos aí que possam trazer a luz ao que de fato aconteceu”, afirma.


Esta reportagem faz parte do projeto Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais produzidos na Amazônia. A reportagem de Jullie Pereira foi realizada em parceria com Report4theworld, iniciativa da Groundtruth