O encontro “Caminhos de cura: as medicinas indígenas no sistema oficial de saúde”, ouviu lideranças indígenas e pesquisadores sobre a inclusão das medicinas indígenas nas políticas públicas do Sistema Unico de Saúde

Por Adison Ferreira

Lideranças indígenas, pesquisadores e representantes de órgãos públicos que desenvolvem projetos e programas relacionados à saúde indígena se reuniram no último dia 22 de maio, em uma conferência online, para debater o uso das medicinas tradicionais indígenas no Sistema Único de Saúde (SUS). O encontro, chamado “Caminhos de cura: as medicinas indígenas no sistema oficial de saúde”, discutiu ações de fortalecimento e integração do conhecimento e das práticas de medicina dos povos originários nas políticas públicas de saúde no Brasil.

Durante o webinar, transmitido pelo canal da organização Amazon Conservation Team Brasil (ACT-Brasil), no Youtube, foi apresentado a experiência prática do Programa Ankarani de Medicina Indígena, iniciativa de fomento à valorização das práticas de medicina indígena dos povos que vivem no lado oeste da Terra Indígena Parque do Tumucumaque, localizada entre os estados do Pará e Amapá, na Amazônia.

 
A Terra Indígena Parque do Tumucumaque possui uma área de 3.071 mil hectares. O território é habitado atualmente por povos sete povos: Akuriyó, Isolados do Rio Citaré, Isolados do Akurio, Aparai, Katxuyana, Tiriyó e Wayana  (Fonte: Instituto Iepé)

O Programa Ankarani é resultado da parceria entre a ACT-Brasil e a Associação dos Povos Indígenas Tiriyó, Kaxuyana e Txikiyana (APITIKATXI), organização representativa dos povos da região.

Uma das ações do programa é o “Centro Guardiões de Conhecimento Kapai e Aretina”, na aldeia Urunai, na TI Parque Tumucumaque. O espaço abriga iniciativas de formações e outras atividades de valorização das práticas ancestrais e dos especialistas em medicinas indígenas. O centro é utilizado por povos originários da região e técnicos do Distrito Sanitário Especial Indígena Amapá e Norte do Pará (DSEI AP/PA).  

“Caminhos de cura”

Segundo Lirian Ribeiro Monteiro, antropóloga e analista de campo da ACT-Brasil, a conferência foi uma oportunidade de ouvir lideranças indígenas e especialistas sobre a importância das medicinas indígenas enquanto ciência. Para ela, promover esse debate é fundamental para fomentar e valorizar as medicinas indígenas, tanto fora quanto dentro do sistema oficial de saúde.

“Diálogos como esses nos ajudam a ampliar os nossos horizontes e compreender que o Brasil precisa cada vez mais, através das políticas públicas, reconhecer a diversidade cultural e científica das milenares práticas e saberes medicinais dos povos originários.  E quando falamos em reconhecer, significa que o Estado possibilite a criação de centros de atendimento nas medicinas indígenas, a formação desses especialistas em seus métodos próprios, ou seja, sem a intervenção do Estado, respeitando os métodos próprios de formação, dentro da cultura e dentro da ciência de cada povo”, afirma Lirian.

Para João Paulo Tukano, liderança indígena do povo Yepamahsã (Tukano), antropólogo e pesquisador da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), debater medicina indígena é confrontar as políticas públicas vigentes e fomentar a inclusão dos conhecimentos tradicionais indígenas nas políticas públicas de saúde do país.

 “É fundamental que os debates sobre medicinas indígenas sejam feitos a partir das experiências dos povos originários. Nós habitamos esse território há 12 mil anos, nós temos nossas tecnologias durante todo esse tempo, nós temos nossa medicina, nós temos nosso conhecimento, nós somos nossos especialistas. Mas quando a ciência, a igreja, começam a criminalizar e demonizar nossos conhecimentos, surge uma estratégia de apagamento do nosso modo de vida. Assim foi desde o começo da colonização até hoje acontece isso. Existe um mecanismo muito forte de apagar o nosso conhecimento, nossa tecnologia, nosso pensamento”, explica.

Tukano é fundador do Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, em Manaus, que recebe pessoas para tratamentos baseados na medicina indígena. Criado em 2017, o espaço oferece alternativas para a cura de doenças através de procedimentos de medicina tradicional realizada pelos Kumuã, também conhecidos como pajés, das etnias Dessana, Tuyuka e Dessana, povos que habitam a bacia do Rio Uaupés, no Alto Rio Negro, no Amazonas.

João Paulo Tukano defende a inclusão das medicinas indígenas nas políticas públicas de saúde do Brasil (Foto: Ana Amélia Hamdan/ISA)

A criação do Centro Bahserikowi é decorrente de um episódio envolvendo a sobrinha de João Paulo Tukano. O caso ocorreu no ano de 2009, no município de São Gabriel da Cachoeira, a 852 km de Manaus. Após ser picada por uma cobra jararaca, a menina da etnia Tukano foi transferida para um hospital na capital do Amazonas para receber tratamento. Os médicos que a atenderam recomendaram a amputação da perna como única alternativa.

Os parentes da criança não concordaram com o diagnóstico e recorreram à justiça para impedir o procedimento e conquistar o direito de utilizar suas técnicas tradicionais como terapia complementar.

“A gente fundou o Centro de Medicina Indígena, em Manaus, a partir de uma experiência dolorosa. A gente queria, de fato, mostrar para a sociedade em geral, que os povos indígenas que habitam esse território há 12 mil anos, têm suas próprias medicinas. E hoje, o centro é uma referência em tratamento de saúde no Brasil e já atendeu em torno de 17 mil pessoas, e a maioria absoluta é de não indígenas”, afirma João Paulo.

O lider indígena ressalta que o conhecimento dos povos originários não consiste em levar o paciente a abandonar a medicina ocidental, mas é um modo de indicar outras possibilidades de tratamento e de acelerar a cura de quem está em tratamento de uma enfermidade.

Programa Nacional de Medicina Indígena

Uma Portaria do Ministério da Saúde publicada em janeiro de 2024 criou um Grupo de Trabalho encarregado de elaborar propostas para o eventual estabelecimento de um programa nacional de emprego da medicina indígena no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (Sasi) do Sistema Único de Saúde.

Assinada pelo secretário nacional Ricardo Weibe Tapeba, a Portaria nº 8, da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), estabelece que o GT tem caráter consultivo. A intenção, segundo o documento, é promover uma abordagem participativa e diferenciada, levando em consideração as especificidades epidemiológicas e socioculturais dos povos indígenas.

O GT do Ministério da Saúde é um passo importante para os movimentos sociais e organizações indígenas e não-indígenas que lutam pelo reconhecimento das medicinas indígenas como parte da rede de cuidados do SUS. A medida, segundo os representantes da ACT Brasil, significa um avanço não apenas para povos indígenas, mas também aos não-Indígenas, que precisam de cuidados para os mais diversos tipos de doenças.

“Respeitar e reconhecer essas medicinas significa a criação de hospitais interculturais, principalmente no sentido de viabilizar o atendimento tanto na medicina ocidental quanto nas medicinas indígenas”, ressalta Lirian.

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Foto de capa: Amanda Lelis/ ACT Brasil

Legenda: O especialista em plantas medicinais Ryan Tiriyó Waiwai, em formação no “Centro Guardiões do Conhecimento”, na aldeia Urunai, na TI Parque Indígena do Tumucumaque