Por Ana Amélia Hamdan

Os impactos da seca na Amazônia estão cada vez mais intensos no município de São Gabriel da Cachoeira, no noroeste do Amazonas. Na área urbana, os moradores convivem com a falta de alguns itens básicos, incluindo gêneros alimentícios. No território indígena, os igarapés estão baixando, dificultando o acesso às roças.  “A sensação é que a água está fervendo”, relata Rosivaldo Miranda, do povo Piratapuya, comunicador da Rede Wayuri e morador de Açaí-Paraná, no Baixo Rio Uaupés.

No último dia 3 de outubro, a Prefeitura de São Gabriel da Cachoeira declarou situação de emergência pelo período de 90 dias nas áreas afetadas por estiagem. As praias de areia branca avançam cada vez mais, levando incerteza e temor para quem está nas áreas urbanas e para quem vive nas comunidades no território indígena, já que o período de estiagem está apenas começando.

O decreto de número 21, assinado pelo prefeito Clóvis Moreira Saldanha, está baseado no Boletim de Monitoramento Hidrometeorológico da Amazônia Ocidental, do Serviço Geológico do Brasil (SGB), que informa que “os níveis registrados nestas estações estão com cotas abaixo do intervalo das mínimas já registradas para o período”.

Conforme os dados do SGB, em São Gabriel da Cachoeira, o nível mais baixo do rio foi registrado em fevereiro de 1992, quando chegou a 330 cm. Na sexta-feira, 6 de outubro, o Rio Negro atingiu o nível de 602 cm. Em 2022, também em outubro, o nível do rio era de 727 cm.

Com o decreto municipal, a prefeitura declara que precisa de apoio complementar do Estado e da União, com recursos técnicos, humanos, materiais e financeiros para enfrentar a seca. O documento informa ainda que a situação causa adversidades de ordem social e econômica que superam a capacidade orçamentária do município de realizar as ações necessárias para o restabelecimento da normalidade. A Coordenadoria Municipal de Proteção e Defesa Civil fará a mobilização dos órgãos para a resposta ao problema.

Abastecimento de alimentos  ameaçado

Na última semana, moradores de São Gabriel da Cachoeira que procuraram água mineral para comprar já não encontraram. As pessoas estão estocando mantimentos, como arroz, macarrão e sal. Na orla, um dos restaurantes mais tradicionais da cidade não abriu no domingo devido à falta de ingredientes para preparo dos pratos. 

Essa situação acontece porque o abastecimento da cidade é feito principalmente por meio de balsas e, com o rio seco, a navegação fica reduzida ou é interrompida. As embarcações conhecidas como recreio – que são os barcos de rede que fazem transporte de passageiros – já não estão subindo o rio. As balsas com mercadorias ainda estão realizando viagens, mas com dificuldades.

Num dos principais portos de São Gabriel da Cachoeira, a vazante expôs uma longa faixa de lixo, como denunciaram os comunicadores da Rede Wayuri, Juliana Albuquerque, povo Baré, e Adelson Ribeiro, povo Tukano. Eles publicaram as fotos no WhatsApp e, com a circulação das imagens, está sendo mobilizada uma ação para limpeza do trecho. Situação semelhante pode ser vista em Barcelos, no Médio Rio Negro, com sujeira e esgoto ficando expostos.

Sujeira exposta em um dos principais portos de São Gabriel da Cachoeira (Foto: Juliana Albuquerque, povo Baré/Rede Wayuri)

Território indígena

Liderança indígena e educador, Juvêncio Cardoso, o Dzoodzo Baniwa, acompanha o trabalho dos Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (AIMAs), que monitoram a questão climática. Em 2022, ele denunciou a cheia extrema na região do rio Ayari, na comunidade Canadá, onde vive. Agora, a região se prepara para a seca extrema.

“Com relação à questão da seca, temos encontrado dificuldade de navegação. Há moradores que utilizam alguns igarapés para ter acesso às suas roças. E nesse período está difícil a navegação pelo igarapé, fazendo as pessoas caminharem mais longe para acessar suas roças. Os igarapés estão inavegáveis e exigem mais tempo e esforço para chegar às roças”, diz.

Essa situação está acontecendo no Rio Ayari, na região do Rio Içana (Bacia do Negro). Segundo Dzoodzo, o nível do rio está baixo, mas ainda dentro da normalidade. Ele também se preocupa com o impacto das altas temperaturas na saúde dos indígenas, especialmente das mulheres, que ficam mais tempo nas roças.

A outra questão é em relação ao solo seco. “Como tem muitos dias que não chove, o solo está ficando mais seco. E se continuar por mais tempo, vai impactar na vida das plantações. Principalmente na pimenteira, no cubiu. Se demorar muito tempo (a seca), vai complicar. Aqui o solo é arenoso, temos a floresta de capinarana, fica mais vulnerável”, afirma.

Dzoodzo conta que os mais antigos relatam que houve uma seca extrema no Ayari, que dificultou a navegação até em pequenas canoas. “Ainda não chegamos a vivenciar esses momentos do passado, mas a gente não duvida que pode acontecer. É bom que a gente fique em alerta para as situações extremas”, ressalta.

Morador da comunidade de Açaí-Paraná, no Baixo Uaupés, Rosivaldo Lima Miranda, povo Piratapuya, relata temperaturas muito altas e uma situação insalubre. “Devido à seca, a água está fervendo, está bastante quente para beber. Estamos com diarreia e dor de cabeça. E está descendo mais sujeira dos igarapés. Fomos tentar cavar poço na beira do rio para achar água branca para tomarmos e ter saúde para nossos filhos e para os idosos”.

Alguns itens básicos já começam a faltar. “Com a estiagem, os barcos começam a parar a navegação. E é por meio dos barcos que a gente faz as nossas trocas de alimentação para ter o básico, como açúcar, sabão e combustível. E a condição vai ficando mais precária”, afirma. “O Uaupés é imenso, mas quando acontece essa seca, de um dia para o outro desce bastante rápido. Tivemos a grande seca em 2017 e está faltando um pouco só para atingir essa marca. É uma situação precária, com sol quente, temperatura da água quente e o rio descendo (secando) a cada dia que passa”, resume.

De acordo com o Serviço Geológico do Brasil, a região amazônica está passando por um processo de seca severa, com chances de seus efeitos e impactos serem repercutidos em 2024, em razão do processo de El Niño, que provavelmente atingirá seu ápice ao final de 2023, impactando o período chuvoso na região e possivelmente resultando em anomalias negativas de precipitação.

As cenas de peixes mortos e rios totalmente secos em outras regiões do Amazonas têm chamado atenção do mundo todo pelo drama social e pelos impactos causados pela emergência climática.

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Conteúdo publicado originalmente no site do ISA – Instituto Socioambiental

Foto de capa: João Claudio Moreira/Divulgação