Mulheres quilombolas se articulam para alcançar posições de liderança e transformar as vidas umas das outras
Por Adrielly Correia
Moradora do Quilombo Arapemã, em Santarém, no oeste do Pará, a cantora e compositora, Ana Cleide Vasconcelos, hoje com 70 anos de idade, sempre se destacou como liderança do seu território, e inspirou centenas de outras mulheres a ingressarem na luta pelos direitos da população quilombola. A conquista deste espaço não foi fácil, pois o machismo também é um desafio presente nas comunidades remanescentes.
Para enfrentá-lo, Ana Cleide e outras mulheres criaram, em 2005, dentro da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (Foqs), o grupo “Na Raça e Na Cor”, iniciativa que começou durante a semana da consciência negra, realizada naquele ano no Quilombo Arapemã. O grupo ganhou esse nome por causa de uma composição da própria dona Cleide, “Nega Nagô”, onde ela canta que é “negra no sangue, na raça e na cor”.
“Dentro dos territórios, a gente via muitas mulheres sofridas, que tinham vontade de ouvir palavras de apoio, de pedir socorro para alguém, de saber seus direitos”, conta dona Cleide. “Então, qual foi o nosso objetivo? Tentar organizar essa situação! Levar apoio a essas mulheres dentro dos quilombos, levar pessoas que pudessem falar sobre política públicas, direitos da mulher, violência doméstica e agressões verbais e físicas”, explica. A partir de então, cada vez mais mulheres se uniram ao grupo e passaram a visitar cada um dos 12 quilombos da região. Hoje, elas presidem sete associações destes territórios.
Dona Cleide conta que o incentivo para a criação do “Na Raça e Na Cor” veio de outra mulher que atuava na prefeitura de Santarém na época. “O nome dela era Roseli e ela trabalhava essa questão voltada para as mulheres. Ela chegou com a gente, disse que queria que a gente tivesse uma reunião, uma fala somente com as mulheres naquele dia”, recorda. Nesta reunião, surgiu a ideia de formar um grupo de mulheres quilombolas dentro da Foqs, para fortalecer ainda mais a luta promovendo cursos, formações, debates e seminários para o público feminino dentro dos territórios quilombolas. Este trabalho transformou a vida de várias famílias chefiadas por mulheres em diversos territórios em Santarém.
“Hoje nós temos mulheres do movimento que estão sendo empossadas no conselho da mulher do município de Santarém, que antes era não-governamental e hoje é governamental, são mulheres que vêm de dentro dos quilombos e que estão ocupando essas cadeiras, para que possam levar as nossas demandas lá para dentro, para serem discutidas nas reuniões”, pontua dona Cleide.
No livro Mulheres Quilombolas – territórios de existência negras femininas – organizado por Selma dos Santos Dealdina, escreve que “apesar de a população negra ser a mais vulnerável a violações de direitos, é preciso desconstruir a ideia romantizada de que os quilombos estão isentos de conflitos internos. O povo quilombola não está isolado em um universo à parte. Ainda que de forma injusta, estamos inseridos no mesmo sistema patriarcal capitalista, cujas relações influenciam e afetam a todos nós”.
Cleide enfatiza a atual participação das mulheres na organização política dos quilombos e nas entidades que representam os quilombolas. Segundo a liderança, hoje “as mulheres estão mais empoderadas”, mas é importante ressaltar que, neste espaço, o debate sobre o empoderamento feminino não parte do conceito de “feminismo”, mas sim da vivência e da necessidade.
Cleide pontua que “cada mulher faz a sua luta”, uma vez que “tem mulheres que lutam na cultura, que lutam na saúde, que lutam nas associações”. Para ela, outro reflexo do empoderamento feminino na contemporaneidade é o fato de que “elas assumem as associações quilombolas, que eram espaços de exclusividade masculina”. Esta reconstrução histórica vem provando que as mulheres tiveram e seguem tendo, participação ativa nas diversas formas de organização e resistência nos quilombos.
Para a liderança, “quando as mulheres dentro dos territórios quilombolas assumem seus lugares de fala”, possibilitam o empoderamento e “isso vai fortalecendo outras mulheres”. Para Cleide esse processo fortalece a Foqs, “porque essas mulheres acabam sendo, muitas das vezes, maioria nesses espaços de discussão. Logo, a federação ganha. Hoje, a Foqs tem espaço de mulheres, que assumem grupos, coletivos, mulheres assumindo lugares estratégicos para a nossa luta”.
Na luta pela preservação de seus territórios as mulheres quilombolas, assim como as mulheres em todos os contextos de conflitos agrários, violências e impactos ambientais, são as mais afetadas.
O Quilombo de Arapemã, onde dona Cleide mora, tem 3.828,9789 hectares, lar de 74 famílias, mas ainda não foi titulado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O pedido foi realizado em 2003, mas não avançou. O território está localizado em uma área considerada estratégica economicamente onde o fluxo de navios cargueiros é constante, por causa da empresa americana Cargill – uma multinacional de produção e processamento de alimentos – e que está instalada praticamente em frente ao quilombo, o que afeta diretamente o modo de vida dos moradores.
Além do porto da Cargill, os quilombos da região enfrentam pressões de outros grandes empreendimentos, pecuaristas e sojeiros. Um dos casos envolve a instalação de um terminal portuário da Empresa Brasileira de Portos de Santarém (Embraps) no lago Maicá, que está embargado pelo Justiça após ação da Foqs em conjunto com outras organizações de Santarém, como Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA).
Em vinte anos, apenas o Quilombo Pérola do Maicá teve parte de seu território titulado e pela prefeitura de Santarém. A falta de regularização contribui para a vulnerabilidade e o surgimento de conflitos na região.
Realidade Local
Miriane Costa Coelho, outra referência feminina dentro do movimento quilombola santareno, faz parte da atual coordenação do grupo ‘Na Raça e na Cor’. Ela enfatiza que o diferencial da luta das mulheres nos territórios quilombolas é a coletividade. Miriane é nascida e criada no quilombo de Nova Vista do Ituqui, pertencente ao território Maria Valentina, que abrange três quilombos na várzea santarena. Filha de um casal de pescadores, ela tem três irmãos e é mãe do Miguel, de seis anos. Ela conta que sempre atuou em causas sociais e fez parte da diretoria da Associação de Mulheres Pescadoras Artesãs e Agricultoras do município de Santarém.
Miriane explica que “as mulheres têm as suas bandeiras de luta” e “vêm se destacando no decorrer da luta na agricultura, no artesanato, na música”. “Então assim, nós [mulheres quilombolas], não discutimos a partir do feminismo, da ideologia do feminismo, mas sim das nossas vivências dentro do território quilombola, a partir do que necessitamos”, afirma.
Miriane explica que o conceito feminista acadêmico defendido não se enquadra na realidade quilombola. “Esse não é o enfoque dos nossos debates e das nossas atuações”, explica. “Nós [mulheres quilombolas] trabalhamos dentro dos nossos territórios […] para que as nossas mulheres não sofram opressão, para que nossas mulheres não sofram racismo, para que nossas mulheres não sofram violência. É a partir desse cenário que construímos a bandeira do empoderamento”.
As lideranças femininas quilombolas não buscam apenas o reconhecimento individual, mas o coletivo. Em suas falas, elas sempre destacam a importância da coletividade e da urgência de inserir mais mulheres na luta. Todos esses anos de luta pelos direitos e valorização das mulheres foram reconhecidos com a Medalha Padre João Felipe Bettendorf, que premia personalidades que se destacaram e contribuíram no desenvolvimento de Santarém. Em 2022, por exemplo, dona Cleide foi agraciada com a comenda. Mesmo com todas as honrarias pessoais recebidas, para ela, o que permanece é o pensamento coletivo, para que grupo siga trabalhando para criar ou reativar os coletivos de mulheres dentro de todos os quilombos do município.
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Este conteúdo foi produzido como parte do projeto Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos produzidos por mídias amazônicas.