O Movimento dos Atigingidos por Barragens (MAB) aponta falhas no Estudo de Impacto Ambiental da obra, A dragagem do rio e o derrocamento das rochas colocam em risco a sobrevivência das comunidades tradicionais e de diversas espécies de animais que vivem na região

Por Adison Ferreira

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) emitiu na última segunda-feira, 26/05, a licença ambiental para o início das obras de derrocamento do Pedral do Lourenço, no município de Itupiranga, sudeste do Pará. O anúncio foi publicado oficialmente e em primeira mão nas redes sociais do governador Helder Barbalho (MDB). Num vídeo de 87 segundos, Helder comemorou a decisão e destacou a importância da obra como um avanço significativo para a infraestrutura logística do Pará e da região Norte.

“Quem é do Pará sabe! Quem é do norte do Brasil sabe o quanto esta obra é importante. Isto posiciona, para que nós possamos garantir a navegabilidade do rio Tocantins o ano todo e fazer com que, de Marabá até Barcarena, nós possamos fazer o rio navegável”, afirmou.

@helderbarbalhooficial

Tenho uma ótima notícia pra compartilhar com vocês: saiu a licença ambiental para o início do derrocamento do Pedral do Lourenço! Mais um passo importante que vai impulsionar o desenvolvimento, gerar emprego e valorizar ainda mais o nosso Pará. Vamos juntos e BoraTrabalhar!

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O anúncio de autorização do início das obras de derrocamento do Pedral do Lourenço, no rio Tocantins, foi publicado oficialmente e em primeira mão nas redes sociais do governador do Pará (Fonte: Reprodução/TikTok)

O tom de euforia do governador sobre a liberação da licença do Ibama também foi adotado por parte da imprensa tradicional do Pará. Reportagens publicadas no jornal O Liberal e nos veículos da família Barbalho, como o Diário do Pará e DOL (Diário Online), destacaram apenas os benefícios da navegabilidade do rio Tocantins, sem nenhuma menção aos riscos socioambientais do projeto.

Mas apesar da narrativa dominante do Governo do Pará na imprensa local, ressaltando somente os avanços significativos para a infraestrutura logística do estado, o derrocamento preocupa pesquisadores, movimentos sociais e comunidades tradicionais que vivem próximo ao pedral.  Na região existem muitas comunidades, incluindo pesqueiras, indígenas e quilombolas.

O projeto de derrocamento do Pedral do Lourenço prevê o tráfego de embarcações e de comboios na hidrovia Araguaia-Tocantins. Para isso um canal de navegação deve ser criado por meio da dragagem e do derrocamento, que é o processo de fragmentação e retirada ou destruição das rochas submersas com explosivos.

A obra é de responsabilidade do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT). Segundo o documento do Ibama, a licença trata do “Derrocamento da Via Navegável do Rio Tocantins – Trecho 2, entre Santa Teresinha do Tauiri (em Itupiranga) e a Ilha do Bogéa, com 35 km de extensão, incluindo a instalação dos canteiros de apoio, industrial e paiol de explosivos”.

Entre as condicionantes apresentadas pelo Ibama estão a implementação de 32 planos e programas ambientais, proibição de retirada de vegetação nativa e fauna silvestre e a criação de programas de educação ambiental. A licença também aponta que o DNIT deve destinar cerca de R$ 4 milhões para compensação ambiental.

Impactos socioambientais

As explosões para execução da obra colocam em risco a sobrevivência das comunidades tradicionais e de diversas espécies de animais que vivem na região como a Tartaruga da Amazônia, o Boto-do-Araguaia e o Tracajá.

Em reportagem publicada no site InfoAmazonia, Edir Augusto Dias, professor de Geografia da Universidade Federal do Pará (UFPA), classifica o complexo de rochas do rio Tocantins como “o maior berçário de peixes no rio acima da barragem de Tucuruí”. Na época da cheia do inverno amazônico, entre os meses de dezembro e maio, o labirinto de rochas do Pedral atinge 80 metros de profundidade.

Em 2019, os pesquisadores Alberto Akama, do Museu Goeldi, e Leandro Sousa, da UFPA, realizaram o primeiro, e único, estudo por meio de mergulhos de até 40 metros de profundidade no Pedral, em uma localização próxima à Vila Tauiry. Mesmo indo apenas até a metade da profundidade do rio, os cientistas identificaram 10 espécies de peixes ameaçados de extinção.

“Vimos que tem peixes muito raros. Tem alguns peixes elétricos. A gente mergulhou até quarenta metros de profundidade. Só que é mais fundo ainda, a gente não quis ir porque a gente não tinha a segurança”, ressalta Sousa. “Esta formação de pedras no meio do rio constitui um refúgio significativo para os peixes do Tocantins”, explica o pesquisador do Museu Goeldi, Alberto Akama.

No entanto, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) encomendado pelo DNIT à empresa DTA/O´Martins Engenharia – vencedora da licitação para construção da hidrovia contratada em 2016, antes da emissão de qualquer licença – abriu mão da pesquisa feita por mergulho autônomo para fazer coleta de peixes apenas na superfície, bem diferente da metodologia adotada pela pesquisa do Museu Goeldi e da UFPA.

A coleta feita pela DTA/O´Martins encontrou apenas 20 espécies de peixes cascudos. Em sua pesquisa subaquática, Akama e Sousa coletaram, em só uma expedição, 35 espécies de cascudos – 75% a mais. Ou seja, os resultados do EIA apresentado pela empresa contratada pelo DNIT ficou longe dos números reais dos impactos ambientais na região, segundo os pesquisadores.

O Ibama também requereu por duas vezes que a DTA/O´Martins Engenharia mergulhasse nas profundezas do rio para identificar quais peixes moram lá antes de detonar sua morada. Mas a empresa deixou de cumprir as solicitações do órgão responsável pela licença, enviando biólogos somente com redes de pesca e anzóis, métodos inadequados para capturar peixes no fundo do rio.

“Com o derrocamento, a hidrovia do Pedral do Lourenço, se ela for feita, se ela for autorizada, essas espécies vão ser profundamente impactadas, e nós ainda não conhecemos estas espécies, então elas serão extintas antes mesmo de serem conhecidas”, explica Leandro Sousa.

Mapa da hidrovia Araguaia-Tocantins (Fonte: Ministério da Economia) 

MAB aponta falhas no Estudo de Impacto Ambiental

O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) divulgou uma nota pública em que repudia a decisão do Ibama e afirma que a licença emitida pelo órgão federal vai impactar milhares de famílias que vivem na região. A entidade informou que o projeto de derrocamento do Pedral do Lourenço coloca em risco o meio ambiente e a segurança alimentar das comunidades locais.

“A obra irá causar a diminuição da quantidade de peixes, contaminação da água, o desaparecimento de espécies, entre outros transtornos, sem previsão de reparação compatível com o tamanho dos danos”, destaca o texto divulgado pelo movimento.

Leia aqui a nota do MAB na íntegra

O MAB também aponta falhas no Estudo de Impacto Ambiental, que, de acordo com o movimento, “não dimensiona a totalidade dos impactos, causando prejuízos gigantescos para as comunidades que tampouco foram reparadas pela construção da hidrelétrica de Tucuruí”.

Para Jaqueline Damasceno, integrante da coordenação nacional do MAB no Pará, a licença do Ibama ignora as comunidades tradicionais da região e representa uma grave violação dos direitos humanos. “Nós denunciamos desde a concessão da licença prévia que vários povos e comunidades tradicionais não foram reconhecidas no estudo de impacto ambiental. Além disso, vários impactos não foram bem dimensionados. Por isso nós nos posicionamos contra essa licença e contra a concessão de mais licenças sobre a Hidrovia Araguaia e Tocantins”, afirma.

Sueyla Malcher, também da coordenação do MAB Pará, afirma que a autorização das obras de derrocamento do Pedral do Lourenço coloca em risco a sociobiodiversidade de toda a região. “A construção da Hidrovia Tocantins e Araguaia irá promover um retrocesso e não um desenvolvimento para a região. [A obra] irá promover a poluição dos nossos rios, a diminuição da biodiversidade e provocará mudanças no modo de vida das populações tradicionais. Por isso, nos posicionamos contra esse projeto que não é de desenvolvimento, e sim de retrocesso e morte.”

Presidente do Sindicato de Pescadores de Itupiranga, Telma Bogéa ressalta preocupação com o projeto e teme que a dragagem do rio e o derrocamento das rochas destrua os berçários de peixes do rio Tocantins. “Para gente tudo parece uma incógnita, não sabemos, de fato, o que vai acontecer com o rio após essas obras. Ficamos preocupados com o que pode acontecer com o berçário de peixes e consequentemente com os pescadores da região. Aqui tem muitas familias que vivem diretamente da pesca”, ressalta.

“Os impactos começam antes mesmo da implantação. A simples ameaça, que também é fomentada pela mídia tradicional, já gera especulação imobiliária, conflitos e insegurança nas comunidades tradicionais”, afirma a professora Rita de Cássia, da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa).

Em abril deste ano, durante o Seminário Pedral do Lourenção na Terra da COP 30 — Diálogos: Hidrovia Araguaia-Tocantins e seu impacto nas comunidades tradicionais do Pedral do Lourenção, realizado as margens do rio Tocantins, em Marabá, a docente destacou os impactos socioambientais provocados pelo projeto político que está por trás das grandes obras na Amazônia:

“Ao centralizar lucros, concentrar terras e marginalizar populações, a derrocagem repete esse ciclo, agora agravado pela ameaça do avanço do mexilhão-dourado — espécie invasora, que gruda nos cascos de grandes embarcações e se alastra pelo Tocantins, sendo responsável por significativos impactos ambientais, como a morte de peixes nativos e a alteração da cadeia alimentar e da qualidade da água.”

Licença é ilegal e viola decisão judicial, aponta MPF

O Ministério Público Federal também se manifestou contra a decisão do Ibama. De acordo com uma nota divulgada pela assessoria de comunicação do órgão, a emissão da licença descumpre decisão judicial já decretada, em especial no que se refere à obrigatoriedade de apresentação dos estudos do desembarque pesqueiro.

Para o MPF, a decisão do Ibama viola a licença prévia e seus requisitos de cumprimento obrigatório – as chamadas medidas condicionantes – estabelecidos pelo próprio Ibama. O Ministério Público ressalta ainda que a licença de instalação desrespeita o direito de povos e comunidades tradicionais à consulta, livre, prévia e informada, conforme prevê a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que tem força de lei no Brasil e não exige regulamentação específica.

Projeto é discutido há 30 anos

De acordo com a plataforma Mapa de Conflitos – Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), desde o regime militar brasileiro (1964-1984), a Bacia Tocantins-Araguaia, a maior bacia hidrográfica brasileira, localizada entre as regiões Norte e Centro-Oeste do país, é alvo de projetos visando sua ocupação, integração e contribuição para o chamado “desenvolvimento nacional”.

 O rio Tocantins, juntamente com o Araguaia, foi historicamente utilizado para a instalação de usinas hidrelétricas (UHEs), como as UHEs Tucuruí (PA), Estreito (TO), Serra da Mesa e Cana Brava (GO).

Os projetos da Hidrovia Tocantins-Araguaia e da derrocagem do Pedral do Loureço começaram a ser discutidos oficialmente no governo Fernando Henrique Cardoso, em 1995. Em 2022, durante a gestão do governo Bolsonaro, o Ibama concedeu a licença prévia, mesmo diante de denúncias e ausência de consulta às comunidades tradicionais.

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Foto de capa: Antonio Cavalcante /Ascom SETRAN